Em 1849, você poderia ler em um jornal brasileiro:
Vende-se um preto de nação, de boa conduta, e um espelho dourado, grande com defeito no vidro.
Jornal do Comercio de 06/09/1849. P. 3
Imaginemos que se trate de um rapaz, a quem daremos o nome de Pedro. Pedro está sendo vendido junto com um espelho. Talvez, no momento em que o anúncio saiu no jornal, Pedro não soubesse que o seu dono planejava vendê-lo - e vendê-lo como se fosse um traste velho, um espelho com defeito. Além disso, como é analfabeto, pouco interesse tem em saber o que está escrito naquele objeto de papel branco com letras pretas.
Agora, imagina os motivos pelo qual agora foi chamado para o quintal e teve de mostrar seus dentes e despir sua camisa diante de um casal de brancos. Desconfia do que estão planejando, pois já viu isso ocorrer uma vez com Inácio, um amigo, adolescente de 14 anos, escravo, filho de Albertina. Inácio foi vendido pouco depois disso. Nunca mais ouviu falar dele. Sua mãe, Albertina, foi enviada para a fazenda dos pais dos senhores. Também não soube mais dela. Nesse momento, Pedro respira aliviado por não estar nos trabalhos na fazenda, ainda que ele só tenha uma vaga idéia do que isso significa, por causa de uma conversa que teve uma vez com o velho Zé.
Deixa os senhores e se dirige à janela, na esperança de ver passar a também escrava Maria. Ele bem que gostaria de cortejá-la e pensar um futuro ao seu lado, mas não pode fazê-lo. Sabe que não é livre para decidir sobre o seu futuro. Na verdade, ele sabe de modo tão certo que não é livre que nem sequer pensa em outra possibilidade. Maria não passa para ir à fonte. Ele retorna aos seus afazeres.
Ao saber que foi vendido, o jovem Pedro não estranha. Na verdade, parece não ter reação. Já tinha sido vendido quando criança e chorara muito quando se viu longe de sua mãe. Apanhou muito por causa disso. Depois, foi-se acostumando. Fez amizade com Albertina e criou-se com o Inácio. Com o tempo, eles também se foram de sua vida. Parece-lhe normal que o seu dono o venda, afinal, ele é o seu proprietário. Nem lhe passa pela cabeça discutir o assunto ou argumentar que, pelo menos, tem o direito de saber para onde vai ou se poderá voltar a ver a sua amada Maria.
Se ele refletir um pouco sobre o assunto, pode decidir-se por fugir. Mas, para onde poderia ir? Fazer o quê? Como iria se sustentar? Onde iria viver?
Nessa situação nada confortável estavam aqueles que também apareciam nos jornais:
Fugio da villa de Vassouras, de uma padaria, um preto de nome Bernardo, nação Congo.... tem no beiço de baixo uma cicatriz procedida de um talho que apanhou.... muitas cicatrizes nas costas por ter sido castigado.... gratifíca-se a quem o.... levar.... no lugar denominado Morro da Vaca, em casa de Manoel José da Silva Moreira.
Jornal do Comercio de 01/04/1849. p. 3.
Pedro não lê tais anúncios. Mas ele sabe que há pessoas que os lêem: alguns por curiosidade, outros procurando ganhar dinheiro com as gratificações dadas aos escravos encontrados. Pedro sabe da existência dessas pessoas. Isso faz com que ele tenha ainda mais medo de fugir. Fora as surras e castigos posteriores! Quando raramente pensa no assunto, lembra do caso do Dito, um escravo que fugira e que apanhara depois tanto que chegara a perder três dentes da frente e ficara com o braço aleijado. Esse não deve ter tido muito futuro... Ele não quer ficar desfigurado como o Dito. Assim, evita pensar no assunto.
Se soubesse ler, Pedro talvez tivesse confirmado ainda mais os seus temores ao deparar-se com notícias como esta:
Por decreto de 7 do corrente mez foi commutada em galés perpétuas a pena de morte, imposta ao réo escravo Rogério... por crime de ferimentos graves praticados na pessoa do feitor da fazenda.
O Município, de 13/12/1877. p. l
O Município, de 13/12/1877. p. l
Agora deixa a casa onde morou desde a infância. Vai não sabe para onde e nem se atreve a perguntar. Aliás, nem lhe parece 'natural' perguntar. Ele é escravo: o que pode esperar? Sem recursos matérias e sem exemplos que lhe confirmem o desejo de lutar pelos seus direitos de ser livre, Pedro não tem opções. Além do medo e, até mesmo, acima deste, as restrições de Pedro que não podem ser vencidas são mentais: simplesmente, tudo parece estar acontecendo como deveria estar acontecendo. Tudo lhe parece normal.
Pedro não tinha a necessidade mental – ou espiritual – de ter um lugar diferente para si no mundo. Ele tinha dificuldades até para encontrar um lugar para si até dentro dele mesmo. Aliberdade era ausente principalmente de sua alma. Hoje, mais de 160 anos depois do anúncio de 1849, em que se vende um escravo e um espelho, poucos imaginariam essa situação ‘normal’. Embora ainda haja preconceito, a grande maioria dos brasileiros pode decidir sobre sua vida muito mais do que Pedro podia.
Longa foi a caminhada do Brasil dos meados do século XIX até os dias atuais. As leis protegem os cidadãos independentemente de sua etnia. Mas, a construção da liberdade não se faz apenas por decretos. Há a necessidade de atender a uma exigência interior, ao ideal de inventar a própria vida, ou seja, cultivar o desejo de ser, efetivamente, livre.
Nos dias atuais, a grande maioria de nós não precisa se preocupar em ser vendido para pessoas estranhas, mesmo assim a liberdade continua sendo um desafio essencial que merece todos os nossos cuidados. O conformismo e o tédio podem entorpecer a nossa visão de mundo, considerando normalidade aquilo que não é de nenhum modo normal. Também para muitos, talvez em uma situação mais triste que a de Pedro, falta a liberdade na alma...