22 de abril de 2010

LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO: entre o Quase e a Ação

“Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção...
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!”

(Álvaro de Campos [Fernando Pessoa]. “Quase”)

Com estes versos, Fernando Pessoa inicia o poema “Quase”. Nele, encontramos inicialmente o que seria o desejo de um projeto, algo que significaria mudanças na vontade e na ação: “arrumar a vida”. E quem de nós, em algum momento, não desejou 'arrumar a vida'? Mas logo em seguida a nossa expectativa de leitores se rompe, o eu-poético se esconde na segurança do conforto proporcionado por saber-se, de antemão, “o mesmo resultado” – nada, efetivamente, muda. Se nada muda, por que eu vou fazer alguma mudança?

Arrumar a vida é, neste poema, afinal, um fazer as coisas ser do jeito que sempre foram. Acomodados nessa perspectiva considera-se “bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!”. Ou seja, melhor fazer qualquer coisa do que deixar tudo como está. Ou não?

As disciplinas no Ensino Médio sofrem, na prática escolar, um deslocamento semântico tornando-se não espaço para o caminhar do aluno no processo educativo rumo à sua formação integral (o que incluiria o Ensino Superior), mas instrumento para o qual avança todo, ou a maior parte, do aparato educacional rumo à aprovação nos vestibulares das “boas” Universidades.

As avaliações, por exemplo, ao invés de permitirem avaliar o aprendizado, os acertos e erros do processo, desde o primeiro momento, parecem dizer: “isto é o que vai acontecer com você se continuar do jeito que está!” e essa mensagem, encorajadora para alguns, ameaçadora para muitos, espelha o jogo de poderes da instituição escolar, refletindo quem detêm o poder de emitir os juízos de qualidade. Constatar o problema que representa tal visão vestibularesca é simples: deslocado para objetivo central, o vestibular tende a esvaziar os outros objetivos didático-pedagógicos que se tornam, em muitos casos, meras representações escritas. Aprender, no Ensino Médio, em termos práticos, equivale a obter bons resultados no processo avaliativo de um vestibular.

Ao se pensar no estudo da linguagem, em particular, a situação apresenta características próprias. Isso porque os vestibulares apresentam diferentes concepções de linguagem. No entanto, tende a vigorar o conceito de Língua Materna como elemento de interação e construção da identidade. A língua, nesse caso, deve ser estudada a partir de seu uso social e não de uma abstração hipotética e pouco realista. Para esse fim é necessário que o texto seja o grande centro da aula de Português. Isso porque as estruturas gramaticais, que ocupavam, anteriormente, o núcleo privilegiado do aprendizado, apenas existem nos textos falados ou escritos, os quais se agrupam em diferentes gêneros textuais que surgem de acordo com as necessidades sociais dos falantes.

Bakhtin  nos ensina que esses gêneros textuais atendem a campos ou esferas de atividade humanas e, por isso, seguem regras que não são apenas lingüísticas, mas também (ou, até, principalmente) sociais. Assim, ao escrever um e-mail para a namorada, o jovem estará seguindo regras de escrita bem diferentes daquelas que deverá utilizar ao redigir uma dissertação escolar. Além do mais, se por um lado, a gramática normativa insiste no uso ‘correto’ da mesóclise’, uma expressão como “fechar-me-ia a porta, por favor”, se utilizada no cotidiano, traria consigo uma carga expressiva de pedantismo e falsa erudição que dificilmente se associa ao conceito de ‘correto’. Da constatação dessas realidades e de sua inclusão na prática metodológica escolar é que se possibilita emergir o individuo que sente a Língua Portuguesa como legitimamente sua.

A linguagem é dialética, entendendo esse dialetismo como o resultado de um jogo de forças intensionais, próprias dos processos históricos e políticos de unificação que interagem com as forças extensionais do pluralismo e da polifonia. Em cada enunciado, com maior ou menor intensidade, as regularidades lingüísticas são sempre atravessadas pela subjetividade do enunciador e pela diversidade sócio-histórica, efeito desse jogo de forças intensionais e extensionais que atuam na expressão da linguagem.

É esse mesmo jogo que permite ao sentido de uma palavra ser determinado por seu contexto, embora ela nunca perca a sua unicidade, pulverizando-se em todos os contextos nos quais se insere. Essa unicidade dá-se porque as palavras funcionam “como sistemas de instruções orientadas para o texto” (ECO, 1983:18) e somente na enunciação desse ganham sentido. Dessa maneira, todo texto se apresenta como unidade de tensão, sujeito a leis de organização que transcendem o nível frástico e que definem estilos e sentidos, provocando também um constante conflito, produto vivo da língua.

Neste momento, podemos retornar a Fernando Pessoa. Na visão social dominante, corre-se o risco de simplificar-se o processo de mudança, em nosso caso, educacional, por não conseguir superar a relação que tais mudanças mantêm com as demais realidades sociais. Daí, uma mentalidade simplista que considera ser suficiente “ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa”, mesmo que as mudanças apontem, na verdade, para o “mesmo resultado”, uma falso lugar de segurança. Isso acontece com freqüência, na escola, quando se fala de centrar o currículo de Língua Portuguesa no texto. Para alguns, tudo isso não passa de ‘fazer [o novo] com o mesmo resultado’.

Examinando diversos materiais didáticos e as propostas curriculares em algumas escolas, o que se verifica é o texto aparecendo na maior parte das vezes apenas como pretexto para exercícios que maquiam estruturas pertencentes a um paradigma pedagógico anterior. Não se trata aqui de opor o ‘tradicional’ ao ‘moderno’, mas de incluir os avanços da Lingüística, da Semiótica e das Teorias da Educação no cotidiano escolar. A experiência nos mostra que nenhuma posição extrema é coerente com a realidade educacional com que nos deparamos.

Os textos verbais fazem uso de estruturas gramaticais; muitos desses textos necessitam da gramática normativa para a sua correta organização. No entanto, a frase é parte menor do texto e como o todo é maior que a soma das partes, estudar a frase, mesmo que incorporando esse estudo ao texto, não responde a todas as necessidades daquele que faz uso da língua nas mais diversas situações. Há estruturas que surgem das relações entre as frases, entre os parágrafos e, até, entre os textos que a gramática tradicional não dá conta e tais estruturas merecem ser abordadas no cotidiano escolar. Além disso, há o aspecto social da língua que como organismo vivo e pulsante se metamorfoseia continuamente. Não basta que o educando identifique a mesóclise, mesmo que em um texto que dela faça uso adequado. É necessário que se identifique o seu valor expressivo nas diversas utilizações possíveis dessa estrutura. Isso permitirá a reflexão e a construção da identidade lingüística. Ou seja, evitaremos que o aluno se sinta um estrangeiro ao utilizar-se de sua própria língua.

Centrar o ensino de Língua Portuguesa no texto requer o desenvolvimento de habilidades que transcendem uma visão reducionista do fenômeno lingüístico. Na prática, no entanto, isso exige que o professor de língua materna tenha acesso a conhecimentos, materiais didáticos e infra-estrutura para poder, efetivamente, coadunar ‘vontade’ com ‘ação’ pedagógica.