17 de março de 2010

O QUE É LITERATURA? Algumas discussões tendo a Escola na mira

Esse quadro chama-se "Retrato de Mona Lisa" e foi pintado por Leonardo da Vinci, que viveu entre 1452 e 1519. Naquela época, as pessoas vestiam-se de uma forma muito diferente dos dias atuais. A senhora nele retratada, Mona Lisa, com certeza, se fosse hoje, não sairia vestida à rua desse jeito. Muita coisa mudou com o tempo. Mesmo nas nossas vidas, percebemos diferentes mudanças: Com o tempo, mudamos a nossa maneira de pensar e ver o mundo. Coisas que nos pareciam muito importantes há um tempo tornam-se hoje algo quase sem importância.


É claro que nós mudamos, mas também tudo ao nosso redor mudou com o tempo. Todas as pessoas estão organizadas em sociedade e essa sociedade muda com o passar dos anos. A todo momento a vida muda e nos traz novas realidades. Porém, o curioso é que, apesar das mudanças, algumas coisas ficam e ficam por muito tempo. O quadro da Mona Lisa, de que falamos no início de nosso texto, ainda é considerado uma obra de arte. Muitas músicas, embora antigas, ainda são ouvidas ou, até mesmo, cantadas. Com certeza, conhece a música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira que inicia com a estrofe abaixo:

Quando olhei a terra ardendo

Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação.

"Asa Branca" é uma música que dificilmente pode ser esquecida. Isso porque ela fez parte da história da cultura de muitas pessoas. Pessoas que se deixaram emocionar pela beleza dessa composição. Uma emoção que se torna maior quando paramos para pensar na letra e entendemos o sofrimento do povo nordestino frente à seca. Há muitos textos cuja beleza atravessa o tempo, chegam até nós e, de alguma forma, nos emocionam. A esse conjunto de textos artísticos, assim como essa arte feita com palavras, chamamos LITERATURA.

Vamos recapitular, mudando a perspectiva: Todos os textos têm sempre uma finalidade. Escrevemos um bilhete para dar um recado a alguém e vamos ao dicionário quando não sabemos o significado de uma palavra ou não temos certeza de como ela se escreve. Há textos para todas as necessidades humanas, embora, é claro, nem sempre temos neles as respostas que queremos. Bem, há textos cujo objetivo é serem artísticos, provocar no leitor o bem-estar que a beleza nos pode dar. Esses são os textos literários. Bem, às vezes a beleza nos inquieta, como quando pensamos em por que alguém gosta de algo de que nós não gostamo. O ponto importante é que a literatura é uma forma de arte que utiliza a palavra como matéria-prima. Assim como para fazer pão necessitamos de farinha, para fazer literatura, necessitamos de palavras. Há muitas formas de arte: a pintura, a escultura, a dança e cada forma de arte utiliza-se de uma matéria-prima diferente. A da Literatura é a palavra.

Às vezes é muito difícil saber por que gostamos de uma coisa e não de outra. A noção do que é bonito muda de pessoa para pessoa. Além disso, o gosto das pessoas, como já vimos, muda com o tempo. Mas, se por um lado, a literatura é a forma de arte que se ocupa dos textos considerados belos e por outro, a beleza é algo que muda facilmente, conforme a época, o lugar e a pessoa, então como saber que texto deve ser considerado uma obra de arte, ou seja, literatura?

Como um texto se torna literário

Como saber se um texto é literário? Examinemos o poema "As pessoas sensíveis", da escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen:


As pessoas sensíveis não são capazes

De matar galinhas

Porém são capazes

De comer galinhas



O dinheiro cheira a pobre e cheira

À roupa do seu corpo

Aquela roupa

Que depois da chuva secou sobre o corpo

Porque não tinham outra



O dinheiro cheira a pobre e cheira

A roupa

Que depois do suor não foi lavada

Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"

Assim nos foi imposto

E não:

"Com o suor dos outros ganharás o pão".



Ó vendilhões do templo

Ó construtores

Das grandes estátuas balofas e pesadas

Ó cheios de devoção e de proveito



Perdoai-lhes Senhor

Porque eles sabem o que fazem.

O poema "As pessoas sensíveis" é considerado parte da literatura em língua portuguesa. Nele, percebemos uma voz que se queixa de haver pessoas sensíveis que não são capazes de matar galinhas, mas que não se importam em comê-las, desde que outra pessoa as mate. Mas será que o assunto principal do poema são as galinhas? É claro que não! O poema permite que nós pensemos em todas as pessoas que, para ser felizes, precisam explorar o trabalho dos outros. Há muita gente assim no mundo: Pessoas que ganham o seu pão com o suor dos outros. Pois é, e essas pessoas, de acordo com o poema, ainda se dizem religiosas e "cheios de devoção". É claro que o problema não é conseguir ou não matar uma galinha. Há uma realidade maior e que toca na vida de todos nós: a exploração do ser humano. O problema maior é o de ganhar o pão com o suor dos outros, como fala o texto.

Falar de forma bela do sofrimento não é fácil. A forma um pouco brincalhona, um pouco amarga como o poema trata desse assunto tão delicado da divisão da sociedade entre os que exploram e os que são explorados emociona algumas pessoas. Faz com que pensem em aspectos profundos da existência humana, nas suas próprias vidas e nas dos outros.

Ao ler esse poema, muitos o consideram literário. Isso significa que dentro da sociedade existe uma comunidade de pessoas que considera esse poema como literatura, ou seja, uma obra de arte feita com palavras. Essa comunidade tem muito valor na sociedade em que vivemos e mostra o seu poder na escola, nos meios de comunicação, na política e em outras instituições sociais. Por isso é tão comum se falar da importância da Literatura na Escola. Tal comunidade é leitora de literatura. Mas é só um texto que resolve o assunto? Basta considerar um poema como feio para deixar de pertencer a essa comunidade?

Não, pois a Literatura de uma língua, como a nossa, a Língua Portuguesa, é formada por muitos textos, de muitos autores, que viveram em épocas e até em lugares diferentes. Assim, a definição de Literatura passa por dois caminhos ao mesmo tempo: de um lado o uso da linguagem no texto e, por outro, os momentos históricos e sociais em que o texto é produzido e lido. Muitas vezes, alguns consideram um texto como literário e outros não, embora os dois lados pertençam à mesma sociedade onde o texto é lido. Para alguns Literatura é apenas o uso das palavras para captar a beleza, que não necessita fazer-nos pensar em nada. Mas não é esse o caso do poema que lemos da Sophia, tampouco é o caso do poema que vamos ler agora:



Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;



É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;



É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.



Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

O poema que lemos é de Camões e foi escrito há mais de 400 anos. Apesar de ser um poema tão antigo, muitos ainda o consideram como literário. Ele ainda é lido por muitas pessoas e, até mesmo, há os que o copiam para enviar para aquela pessoa que amam. Camões certamente pode ser considerado um grande artista ao escrever um poema que consegue ser apreciado por tantas pessoas, apesar da passagem dos anos. E enquanto o tempo for passando e houver tantas pessoas que considerem esse poema belo, ele continuará fazendo parte da Literatura da Língua Portuguesa. É claro que muitas pessoas discutem a validade dos versos de Camões: Tais pessoas reforçam, assim, seu direito à cidadania por se inserirem na comunidade leitora de Literatura.

Mais importante do que nos preocuparmos com se um texto vai deixar de ser considerado literário ou se ele vai continuar pertencendo à Literatura e até quando, é, nós, como leitores, tirarmos todo o proveito do que a Literatura tem a nos oferecer. E o que a Literatura tem a nos oferecer? Conhecimentos variados sobre a sociedade em que vivemos e na que outros viveram, mas, principalmente, o prazer que só as coisas bonitas nos conseguem dar. Um prazer que se origina do pensamento, quando questionamos a vida e o mundo ao nosso redor. Todos, o que inclui professores e alunos, temos o direito ao texto literário e é muito importante que você o leia, caso contrário, outros o farão por você e lhe passarão a perna! Ler Literatura, comentar sobre os textos literários, construir leituras neles é um prazer e, principalmente, um direito seu!

BIBLIOGRAFIA
BOSI, Alfredo (1977). O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/Edusp.
EAGLETON, Terry (2001). Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes.
ISER, Wolfgang (1999). O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. 2. São Paulo: editora 34.
SILVA, Vítor M. de A . (1990). Teoria e Metodologia Literárias. Lisboa: Universidade Aberta.
VIEIRA, Alice (1989). O prazer do texto: perspectivas para o ensino de literatura. São Paulo: EPU.

10 de março de 2010

POR QUE O FRANGO ATRAVESSOU A RUA?

A intertextualidade é um tema muito importante quando o assunto é a construção do sentido em um texto. A intertextualidade pode se constituir de modo explícito ou implícito. Nesta seção, no capítulo 3, trataremos somente das relações de intertextualidade explícita, ou seja, quando há a citação da fonte do intertexto, como acontece nas citações e referências, por exemplo. Observe isso no trecho a seguir:


Relatos variados dão conta de que Fidel costumava trabalhar, durante os 47 anos em que esteve à frente de Cuba, de segunda a domingo, até as madrugadas. Assim, pouco tempo possuía para usufruir de eventuais vantagens concedidas pelo cargo. Apesar disso, a revista norte-americana "Forbes" vem incluindo o líder em uma lista de reis, rainhas e ditadores mais ricos do mundo, que prepara anualmente. Em abril de 2006, Fidel Castro aparecia como o oitavo da relação, com um patrimônio pessoal avaliado em US$ 900 milhões.


GARAVELLO, Murilo. “Orador carismático, governante centralizador”. Especial Cuba. Encontrado em < http://noticias.uol.com.br/ultnot/especial/2008/cuba/perfilfidel.jhtm> acessado em 21 de fevereiro de 2008.

O texto de Garavello estabelece uma evidente intertextualidade explícita com a revista Forbes. A seleção de uma determinada informação atribuída a uma fonte que não o próprio autor, ajuda, algumas vezes, a reforçar um ponto de vista, a diminuir posições contrárias em questões polêmicas, como é o caso aqui.

Uma das perguntas mais famosas que circula na internet é “Por que o frango atravessou a rua?”. As diferentes respostas apelam ao conhecimento enciclopédico do leitor e à sua habilidade de construir relações intertextuais no processo de leitura do texto. As diferentes marcas de intertextualidade explícita, no entanto, não facilitam a vida do leitor que não tenha bom conhecimento de mundo. Vejamos alguns exemplos:

PLATÃO: Porque buscava alcançar o bem.

Muitos sabem que Platão era um filósofo e como a frase tem um ‘ar’ filosófico pode parecer que está tudo certo. Mas, para aqueles que conhecem um pouco melhor o pensamento de Platão, há possibilidades de interpretação do texto mais profundas. O “Bem” para Platão é o ápice da existência, o ideal supremo que todos deveriam alcançar. Até as galinhas, de acordo com a visão bem humorada deste texto. Levanta-se, então, uma suspeita no leitor: as galinhas recebem, no texto, o tratamento dado aos seres humanos. Um outro exemplo confirmará ou não essa hipótese:
MOISÉS: Porque uma voz do céu bradou ao frango: “Vós atravessaréis a rua”, e o frango cruzou a rua, e houve grande regozijo.

Compreender essa resposta exige algum conhecimento da tradição judaico-cristã. Segundo a Bíblia (ou a Tora), Deus manda que Moisés cruze o Mar Vermelho para libertar os israelitas da escravidão no Egito. A escolha de termos como ‘bradar’ e do pronome de tratamento ‘Vós’ que caracterizam certo estilo religioso, reforçam essa idéia. O frango aqui não é um ser humano qualquer, mas representa o próprio Moisés, numa verdadeira ousadia galinácea do autor.

Tais ousadias são comuns nos dias de hoje, em especial em textos que circulam sem autoria na internet. Muitas vezes, elas são criativas e enriquecem o texto. Outras, tornam-se ofensivas e preconceituosas. Um exemplo de preconceito é reconhecível no trecho a seguir:

FEMINISTAS: Para humilhar a franga, num gesto exibicionista, tipicamente machista, tentando, além disso, convencê-la de que, enquanto franga, jamais terá habilidade suficiente para cruzar a rua.

Na fala do que é denominado como “feministas” podemos identificar alguns preconceitos comumente associados a este grupo social: a incapacidade de encontrar o equilíbrio entre os gêneros sexuais e de ver qualquer atitude do masculino como sendo ameaçadora ao feminino. Além disso, não deixa de ser interessante notar que não se assume uma autoria determinada (do tipo Fulano disse), o que torna difícil identificar um texto específico que estabeleça a relação intertextual com o que se escreve. No texto resposta, ecoam outros comentários que ouvimos e que traduzem um modo de ver o mundo modelado apenas pelo senso comum e associado a um tipo específico de pessoa.

Diferente é a situação da seguinte resposta:

MARTIN LUTHER KING: Eu tenho um sonho: que meus frangos vão um dia viver em uma nação onde eles poderão cruzar a rua sem questionamentos ou dúvidas. Eu tenho um sonho hoje!

Martin Luther King foi um pastor e ativista político que se tornou famoso pela sua luta nos EUA pelos direitos civis. Em 1963, profere o discurso “Eu tenho um sonho”, no qual encontramos o seguinte trecho:

Eu tenho um sonho: que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!

É fácil encontrar as semelhanças entre as duas falas, a do fictício King preocupa-se com os seus frangos e no direito deles de atravessar a rua; já o verdadeiro Martin Luther King pensava em suas crianças não sofrendo de preconceitos raciais.

Há muitas formas de fazer humor, quando nos aproximamos de um texto, buscamos algo: informarmo-nos, estudarmos, divertir-nos etc. O texto “Por que o frango atravessou a rua?” busca o humor, a diversão do leitor, por deslocar textos de seu contexto ou por alimentar-se do senso comum. Nos qualquer um dos casos, espera-se que o leitor (re)conheça o outro texto. Isso exige um constante ampliar de horizontes, pensando a leitura como uma atividade em rede, que nos enreda nos diversos conhecimentos que vamos adquirindo no correr da vida.