Dentro da história da disciplina escolar da Língua Portuguesa, a linguagem já foi conceituada de três maneiras diferentes. Esses modos de considerar a linguagem deixaram forte herança no modo como hoje se constitui toda a área de Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias (LCT).
Até a década de 70, o conceito de linguagem definia-se como expressão ou tradução do pensamento. Ou seja, como a capacidade do indivíduo de organizar o seu pensamento. Desse modo, usar a língua portuguesa era o mesmo que pensar e pensar certo seria utilizar a linguagem de modo correto, seguir regras universais (divisão, classificação e organização).
Nesta concepção de linguagem, os estudos gramaticais – a par dos estudos retóricos – são aqueles que desenvolverão a técnica para falar e escrever bem e certo. Estabelecendo um íntimo diálogo com a visão positivista de mundo, as regras, no estudo escolar, são vistas como o modo de organizar o mundo, e a partir da obtenção da ordem pode-se caminhar ao progresso.
Vale destacar também que o currículo é estruturado pelo Ministério da Educação e Cultura de modo preciso e claro, com as listas de conteúdos, autores e obras que deverão ser de conhecimentos dos estudantes de acordo com a série em que estão matriculados. Isso organiza tanto a formação de professores como a dos alunos.
A década de 70 assiste à chegada aos documentos escolares e a alguns manuais e livros didáticos, das ideias da linguística, misturando conceitos estruturalistas e pós-estruturalistas. A linguagem é vista como instrumento de comunicação, um código (conjunto sistematizado de regras) que possibilita transmitir uma mensagem (comunicar = tornar comum entre dois). A dicotomia saussureana LANGUE/PAROLE ganha força nos estudos linguísticos na formação dos professores, mas na Escola, como na Universidade, estuda-se, sobretudo, a Langue, ou seja, sistema estruturado de signos, não a Parole, a manifestação individual da Langue.
Influenciada pelas ideias de Jakobson, a escola irá valorizar as funções da linguagem, preocupando-se em categorizar – estruturar - o para quê o indivíduo utiliza a linguagem de acordo com quem a utiliza, onde, quando, com quem a fim de comunicar algo.
A gramática escolar continuará muito influenciada pela visão anterior, retirando de cena, contudo, os estudos retóricos e incidindo, principalmente, em exercícios estruturais de morfossintaxe frasal na busca da internalização inconsciente da norma culta (tomada como variedade de prestígio e aquela que irá promover o cidadão). as regras possibilitam internalizar um modo de fazer (aplicação das regras) que será desenvolvido em circunstâncias sociais fora do ambiente escolar. Ou seja, o como e quando o falante faz uso das regras que aprende na escola não é preocupação da disciplina de Língua Portuguesa.
A diretriz educacional oficial neste momento (década de 70) é de dar maior autonomia ao professor, deixando-o livre para escolher e organizar o seu currículo. Na prática, contudo, foram os vestibulares que se encarregaram de organizar o currículo. Além disso, a formação do professor começa a priorizar a quantidade formada e não a qualidade docente, os salários da categoria docente começam a se achatar e as formulas prontas soam preferíveis a quaisquer escolhas conscientes dos professores.
Nessa época também surge a área de Área de Comunicação e Expressão, englobando Língua Portuguesa, Educação Física, Arte e Língua Estrangeira Moderna sem, contudo, conseguir uma aproximação, de fato, entre esses componentes curriculares. Particularmente, a Educação Física ainda está muito mais atrelada a um conceito de ‘boa saúde’ (mens sana in corpore sano) do que a um modo de comunicar e expressar.
A década de 80, no que diz respeito à documentação oficial, continua valorizando a autonomia do professor e começa a dar um espaço maior ao texto. A formação docente continua priorizando a quantidade e com os baixos salários pagos à categoria, há uma fuga de talentos da área. A profissão passa a ser vista, por alguns, como um ‘bico’ que complemente a renda. Divulga-se a máxima que “quem sabe faz; quem não sabe, ensina”.
Entrando no século XXI, temos o surgimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Esse documento definirá linguagem como espaço psicossocial em que os indivíduos atuam, constituem outros e se constituem. Ou seja, trabalho coletivo (discurso) orientado para uma finalidade em situação de uso. O conceito é complexo e não imediatamente absorvido pelos professores, o que trouxe uma série de incompreensões e a oposição ‘tradicional’/ ‘construtivista’, usualmente, mal interpretada e aplicada.
(a) conteúdo temático (o que pode ser dito)
(b) construção composicional (estrutura do que é dito)
(c) estilo (recursos expressivos e marcas autorais)
Mais teoricamente do que na prática, o estudo gramatical da vez à Análise Linguística – processo reflexivo dos movimentos dos recursos lexicais e gramaticais e da construção composicional de textos considerando seu gênero discursivo, suporte, meio/época de circulação e de interlocução (contexto). Relaciona-se às atividades (ações) de leitura e escrita (reescrita). O que se deseja é que o conhecimento e a reflexão das regras visem a atividades (reais e contextualizadas) de recepção e produção.
A área de Comunicação e Expressão é substituída pela área de Linguagem, Códigos e suas Tecnologias, englobando as disciplinas de Língua Portuguesa, Educação Física, Artes e Língua Estrangeira Moderna. A Língua Espanhola ganha grande espaço no cenário educativo e iniciam-se movimentos para, efetivamente, aproximar as disciplinas entre si, constituindo uma área. Tarefa, contudo, na qual ainda há muito a fazer.
Mereceria aqui consideração especial o espaço dos estudos literários nesse cenário. A visão dominante na escola era, até o surgimento dos PCN, de valorizar a literatura no Ensino Médio (chamado de 2.o grau), pelo prisma histórico, centrado em relacionar características de obra às características de estilo de época. O ensino Fundamental (chamado de 1.o grau) priorizava o ‘prazer da leitura’, conforme visto em obras ditas paraliterárias de forte cunho moralista.
O advento dos PCN valorizará o processo de formação do leitor literário. O conceito é também amplo e foi interpretado das mais variadas formas, muitas delas, incoerentes: o importante é que o estudante leia, não interessa o quê; tudo é literatura; literatura não é importante; tudo que é estudado na corrente histórica da literatura deve produzir prazer ao estudante etc.
Hoje, notamos que considerar o estudo literário dentro da área de Linguagens é fazer um recorte ao fenômeno literário, aproximando-o do próprio estudo da linguagem, que deve ser visto contextualizado e no processo lento e complexo de formação de um leitor de literatura, a par das outras formações de leitor.
Bom panorama do ensino de língua portuguesa no País! Aliás, acho até que essa palavra poderia aparecer no título ou nas palavras-chave.
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