Todo livro didático é um objeto atuante numa sala de aula e compõe um sistema complexo de ações.
O ensino de língua portuguesa na escola brasileira é uma realidade tardia. Data de 1838 seu ingresso no currículo do Ensino Secundário do Colégio Pedro II. Ainda assim somente durante o primeiro ano dessa fase de ensino e como preparação para o trivium (gramática, retórica e lógica) em latim.
Mesmo depois que o trivium deu origem a uma só disciplina, português, o material de apoio ao professor era, sobretudo, a Antologia nacional, coletânea de textos literários que eram vistos como modelos do bem-escrever e gramáticas filosóficas. Os textos eram utilizados como ponto de partida para a leitura e a recitação, o estudo do vocabulário, da gramática normativa e da gramática histórica. Em outras palavras, o texto era pretexto (Geraldi, 1984) para outras atividades didáticas ou objetos de estudo.
Grande parte da população era analfabeta, mesmo já bem adentrado o século XX, e a escola era pensada para uma elite mais ou menos homogênea, como momento de preparação para os exames preparatórios para os poucos cursos superiores existentes. Além disso, a não-obrigatoriedade da conclusão, até 1931, do secundário e a falta de seriedade dos exames preparatórios, onde grassava a corrupção, tornava a escola um espaço submetidos as exigências desses exames.
Foi a lei 5.672, de 1971, que deu início a acentuadas mudanças no conceito de material didático. Cabe lembrar que essa lei, produto da visão da ditadura militar, foi decisiva como parte do processo de firmar a democratização no acesso da população à escola. O objetivo era que a escola assumisse o papel de fornecer mão de obra qualificada à expansão industrial e capitalista almejada. Essa expansão do ensino formal, fazendo-o chegar às camadas populares, acarretou a heterogeneidade dos letramentos e das variedades dialetais com as quais a escola teve de lidar, alterou o perfil sociocultural, econômico e profissional do docente, que perde prestígio e autonomia.
O livro didático pode ser considerado um gênero de discurso, no conceito de gênero a que faz referência Mikhail Bakhtin. O modelo proposto a partir de 1971 interfere propositalmente na autonomia do professorado, propondo-se a estruturar e facilitar o trabalho de um ‘novo’ professor, apresentando não apenas conteúdos, mas também atividades didáticas e organizando-se conforme a divisão do tempo escolar (séries/ volumes; bimestres/unidades, por exemplo). O livro didático atende aos interesses das editoras, de professores, das escolas e de órgãos governamentais de educação. Desse jogo tenso de interesses, o livro didático seleciona seus temas, formas de composição e estilo.
O autor seleciona, dispõe e organiza, por meio de textos injuntivos, explicativos e informativos diferentes objetos de ensino. Trata-se de um movimento de reconstruir e ressignificar diferentes conteúdos que estão em constante conflito social, político e epistemológico. As escolhas e formas de apresentar os conteúdos refletem a apropriação que autores e outros agentes envolvidos no processo de produção fazem do conhecimento tanto da área específica de que trata o livro, como da Didática e Metodologia dos processos de ensino-aprendizagem. Isso envolve os conhecimentos de documentos oficiais, como os PCN, dos produtos gerados pelas avaliações de rede (SAEB, SARESP, ENEM etc.), das propostas dos concursos vestibulares, e dos critérios do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Contudo, o livro didático é um objeto: um texto e, como tal, passível de ser interpretado, contextualizado e ressignificado por professores e alunos, que atuam com papéis muito diferenciados nesse processo. Ao professor cabe, antes de tudo, conhecer e analisar o projeto didático autoral, o estilo didático empregado e a apreciação valorativa dos autores em relação aos objetos de ensino focados (conteúdos), ao desenvolvimento de habilidades e à relação com os interlocutores (alunos, professores e outros agentes educadores).
É conveniente lembrar que toda aula supõe a existência de um projeto de interação do professor que gerencia efetivamente o evento, ainda que, por vezes, possa ser menos ativo no que se refere à organização didático-discursiva do que lhe serve como fonte de referência para o seu projeto de gerenciamento. Em outras palavras, isso poderia signficar que diante de um tema, o professor 'pega o que está mais à mão' sobre o assunto, por vezes, sem refletir claramente na sua própria proposta de aula.
Essa interação em sala de aula (professor - livro didático - aluno) é o momento, por excelência, em que o texto se torna discurso, ganha vida, cumpre o seu papel, contudo, será sempre um papel secundário, mesmo quando ele é lido ou ditado em voz alta ou dado como única referência. Isso porque é o professor que irá escolher o que do livro será considerado, quando e como.
Aqui reside um grave perigo de o livro didático se perder no processo de ensino-aprendizagem. Isso pode ocorrer no processo de explicar o conteúdo, muitas vezes construído por 'espacializar' o objeto de ensino (conteúdo) com expressões do tipo "aí diz", "como vimos lá" ou semelhantes que legitimam o conteúdo, mas que se afastam do projeto didático autoral. Sem se orientar ou sequer respeitar o projeto didático autoral, o professor pode fragmentar a proposta pedagógica do livro didático e esvaziar as articulações construídas nesse projeto.
GERALDI, J.W. O texto em sala de aula – leitura e produção. São Paulo: Ática, 1984.
RAZZINI, M. P. G. O espelho da nação: A Antologia nacional e o ensino de português e de literatura (1838-1971). Tese de doutoramento. Campinas: IEL/UNICAMP
ROJO, Roxane. "Gêneros de Discurso/Texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao trivium?". In: SIGNORINI, Inês. [Re]Discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola, 2008.
O ensino de língua portuguesa na escola brasileira é uma realidade tardia. Data de 1838 seu ingresso no currículo do Ensino Secundário do Colégio Pedro II. Ainda assim somente durante o primeiro ano dessa fase de ensino e como preparação para o trivium (gramática, retórica e lógica) em latim.
Mesmo depois que o trivium deu origem a uma só disciplina, português, o material de apoio ao professor era, sobretudo, a Antologia nacional, coletânea de textos literários que eram vistos como modelos do bem-escrever e gramáticas filosóficas. Os textos eram utilizados como ponto de partida para a leitura e a recitação, o estudo do vocabulário, da gramática normativa e da gramática histórica. Em outras palavras, o texto era pretexto (Geraldi, 1984) para outras atividades didáticas ou objetos de estudo.
Grande parte da população era analfabeta, mesmo já bem adentrado o século XX, e a escola era pensada para uma elite mais ou menos homogênea, como momento de preparação para os exames preparatórios para os poucos cursos superiores existentes. Além disso, a não-obrigatoriedade da conclusão, até 1931, do secundário e a falta de seriedade dos exames preparatórios, onde grassava a corrupção, tornava a escola um espaço submetidos as exigências desses exames.
Foi a lei 5.672, de 1971, que deu início a acentuadas mudanças no conceito de material didático. Cabe lembrar que essa lei, produto da visão da ditadura militar, foi decisiva como parte do processo de firmar a democratização no acesso da população à escola. O objetivo era que a escola assumisse o papel de fornecer mão de obra qualificada à expansão industrial e capitalista almejada. Essa expansão do ensino formal, fazendo-o chegar às camadas populares, acarretou a heterogeneidade dos letramentos e das variedades dialetais com as quais a escola teve de lidar, alterou o perfil sociocultural, econômico e profissional do docente, que perde prestígio e autonomia.
O livro didático pode ser considerado um gênero de discurso, no conceito de gênero a que faz referência Mikhail Bakhtin. O modelo proposto a partir de 1971 interfere propositalmente na autonomia do professorado, propondo-se a estruturar e facilitar o trabalho de um ‘novo’ professor, apresentando não apenas conteúdos, mas também atividades didáticas e organizando-se conforme a divisão do tempo escolar (séries/ volumes; bimestres/unidades, por exemplo). O livro didático atende aos interesses das editoras, de professores, das escolas e de órgãos governamentais de educação. Desse jogo tenso de interesses, o livro didático seleciona seus temas, formas de composição e estilo.
O autor seleciona, dispõe e organiza, por meio de textos injuntivos, explicativos e informativos diferentes objetos de ensino. Trata-se de um movimento de reconstruir e ressignificar diferentes conteúdos que estão em constante conflito social, político e epistemológico. As escolhas e formas de apresentar os conteúdos refletem a apropriação que autores e outros agentes envolvidos no processo de produção fazem do conhecimento tanto da área específica de que trata o livro, como da Didática e Metodologia dos processos de ensino-aprendizagem. Isso envolve os conhecimentos de documentos oficiais, como os PCN, dos produtos gerados pelas avaliações de rede (SAEB, SARESP, ENEM etc.), das propostas dos concursos vestibulares, e dos critérios do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Contudo, o livro didático é um objeto: um texto e, como tal, passível de ser interpretado, contextualizado e ressignificado por professores e alunos, que atuam com papéis muito diferenciados nesse processo. Ao professor cabe, antes de tudo, conhecer e analisar o projeto didático autoral, o estilo didático empregado e a apreciação valorativa dos autores em relação aos objetos de ensino focados (conteúdos), ao desenvolvimento de habilidades e à relação com os interlocutores (alunos, professores e outros agentes educadores).
É conveniente lembrar que toda aula supõe a existência de um projeto de interação do professor que gerencia efetivamente o evento, ainda que, por vezes, possa ser menos ativo no que se refere à organização didático-discursiva do que lhe serve como fonte de referência para o seu projeto de gerenciamento. Em outras palavras, isso poderia signficar que diante de um tema, o professor 'pega o que está mais à mão' sobre o assunto, por vezes, sem refletir claramente na sua própria proposta de aula.
Essa interação em sala de aula (professor - livro didático - aluno) é o momento, por excelência, em que o texto se torna discurso, ganha vida, cumpre o seu papel, contudo, será sempre um papel secundário, mesmo quando ele é lido ou ditado em voz alta ou dado como única referência. Isso porque é o professor que irá escolher o que do livro será considerado, quando e como.
Aqui reside um grave perigo de o livro didático se perder no processo de ensino-aprendizagem. Isso pode ocorrer no processo de explicar o conteúdo, muitas vezes construído por 'espacializar' o objeto de ensino (conteúdo) com expressões do tipo "aí diz", "como vimos lá" ou semelhantes que legitimam o conteúdo, mas que se afastam do projeto didático autoral. Sem se orientar ou sequer respeitar o projeto didático autoral, o professor pode fragmentar a proposta pedagógica do livro didático e esvaziar as articulações construídas nesse projeto.
GERALDI, J.W. O texto em sala de aula – leitura e produção. São Paulo: Ática, 1984.
RAZZINI, M. P. G. O espelho da nação: A Antologia nacional e o ensino de português e de literatura (1838-1971). Tese de doutoramento. Campinas: IEL/UNICAMP
ROJO, Roxane. "Gêneros de Discurso/Texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao trivium?". In: SIGNORINI, Inês. [Re]Discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola, 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário