Se eu
trago uma receita culinária para a minha aula de Língua Portuguesa, para a
partir dela fazer algumas atividades com meus estudantes, eu posso, realmente,
dizer que se trata de uma receita culinária? Ou ela se tornou um texto
didático? E se é um texto didático, trata-se de um texto eficiente? Ou seja, um
texto didático que não foi pensado para ser texto didático terá boa qualidade?
Atingirá os seus objetivos?
Essas
questões são muito importantes e nos colocam diante de algo fundamental ao
pensarmos discursivamente em um texto: a intenção comunicativa.
Todo
aquele que se faz uso de uma linguagem para produzir um texto, sem dúvidas, tem
uma intenção comunicativa. Ou seja, ele o faz com alguma intenção e essa
intenção não é apenas a de transmitir uma mensagem, passar uma informação. O que todos nós desejamos ao produzir um
texto, no nosso cotidianos, é interagir com outra(s) pessoa(s).
Em
outras palavras, todo locutor tem um objetivo em mente prático ao produzir o
seu texto e, quase sempre, tal objetivo se relaciona com alguma ação a ser
realizada. Esse objetivo leva o locutor a certas escolhas. Uma das primeiras é
o próprio gênero de discurso empregado. Isso porque o próprio locutor não pode
dispor da língua como quer, mas ele mesmo está sujeito a regras e convenções. Uma
receita culinária somente tem sentido de existir se houver pessoas interessadas
em aprender a cozinhar. Na sua origem, as receitas culinárias não foram feitas
para serem usadas em sala de aula ou para que se adivinhe o futuro...
Toda
palavra, falada ou escrita, faz parte de um movimento maior dos seres humanos em
torno de uma ação social. Por meio das palavras, uma intenção pessoal pode se
tornar social.
Vejamos
ainda outro exemplo, uma bula de remédios. Ela pode ser lida a qualquer momento
e pelos mais variados motivos. Ainda que a maioria considerasse absurdo, somos
livres até para ler uma bula de remédios antes de dormir, para relaxar enquanto
o sono não vem. Mas, sabemos que a intenção comunicativa de uma bula de
remédios é outra. O objetivo de uma bula de remédios existir na sociedade não é
para que relaxemos antes de dormir, mas para que conheçamos adequadamente o
remédio e saibamos como usá-lo. O conhecimento e a aplicação das informações da
bula de remédios pode significar o restabelecimento da saúde.
Assim, alguém
pode até ler uma bula de remédio para se distrair ou utilizar uma receita
culinária para elaborar um exercício escolar, contudo essas não são as
intenções comunicativas de tais textos. É um uso para esses gêneros, mas não
atende às suas intenções comunicativas. Isso cria um desafio, de fato, para
trabalharmos os gêneros discursivos em sala de aula.
Todo
gênero discursivo deve levar em conta a realidade social que lhe deu origem.
Segundo Mikhail Bakhtin:
“Um
traço essencial (constitutivo) do enunciado é seu direcionamento
a alguém, o seu endereçamento. À diferença das unidades significativas
da língua – palavras e orações –, que são impessoais, de ninguém e a ninguém
estão endereçadas, o enunciado tem autor (...) e destinatário. Esse
destinatário pode ser um participante –interlocutor direto do diálogo
cotidiano, pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum
campo especial da comunicação cultural, pode ser um público mais ou menos
diferenciado, um povo, os contemporâneos, os correligionários, os adversários e
inimigos, o subordinado, o chefe, um inferior, um superior, uma pessoa íntima,
um estranho, etc.; ele também pode ser um outro totalmente indefinido,
não concretizado (em toda sorte de enunciados monológicos de tipo emocional).
Todas essas modalidades e concepções do destinatário são determinadas pelo campo
da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere. A quem se destina
o enunciado, como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os
destinatários, qual e a força e a influência deles no enunciado – disto
dependem tanto a composição, quanto, particularmente, o estilo do enunciado.
Cada gênero do discurso em cada campo da comunicação discursiva tem a sua
concepção típica de destinatário que o determina como gênero. ”
(BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2003. p 301)
O
primeiro e, sem dúvidas, um dos maiores desafios de quem produz um texto é reconhecer
a realidade desse destinatário presente em todo texto, antes mesmo de começar a
produzi-lo ou quando o estamos lendo.
Quando
vamos escrever ou falar, devemos pensar em como o locutário cooperar com a
intenção comunicativa do texto produzido.
Já
quando vamos ler ou ouvir, devemos compreender que relação estabelecemos nós –
como realidade social – com o destinatário que se desenha naquele texto.
Aqui
temos, de imediato, um importante conteúdo para as nossas aulas de Língua
Portuguesa. Ou seja, como auxiliar o locutário – aquele que nos escuta ou lê –
a colaborar nos processos de interpretação de acordo com a intenção
comunicativa que presente nesse mesmo texto? Como encontrar as distâncias entre
quem somos e o leitor visado pelo texto lido?
Como
nos lembra o estudioso italiano Umberto Eco:
“entre
a intenção do autor (muito difícil de descobrir e frequentemente irrelevante
para a interpretação de um texto) e a intenção do intérprete que (...)
simplesmente ‘desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu
propósito’ existe uma terceira possibilidade. Existe a intenção do texto”
(ECO, Umberto. Interpretação e
Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 29)
Ah, se
pudéssemos saber o que o texto diz sem termos que lê-lo! Essa atitude é comum
em qualquer um de nós como locutários e conduz a uma pergunta em todo processo
de produção textual: Como vencer qualquer resistência, má vontade e preguiça natural
em um leitor diante de um texto? Como fazê-lo colaborar com a intenção
comunicativa desse texto?
Sem essa
importante colaboração, o locutário poderá não interpretar adequadamente, não
participando adequadamente nas ações que sustentam a própria existência do
texto que leu. Ele vai ler, mas não vai interpretar adequadamente, nem agir de
acordo.
Mas por
que o locutário não atenderia à intenção comunicativa do texto que lê? Isso
pode acontecer porque aquele que assume o papel de locutário não sabe (ou não
deseja) realizar o trabalho de envolvimento com o texto necessário para
interpretá-lo.
O
primeiro passo é compreender bem – da perspectiva linguística e social – o
gênero discursivo do qual esse texto é um exemplar. Como nos lembra Mikhail Bakhtin:
“Quanto
melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais
plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é
possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação
singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre
projeto de discurso.”
(BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. p 285)
Assim,
é muito importante considerarmos a interpretação de um texto como um conteúdo
complexo nas aulas de língua portuguesa, estratégias que se aprendem gradativamente, e que passam
necessariamente por identificar a intenção comunicativa.
Para
identificar tal intenção, algumas perguntas podem ajudar:
·
Para que serve esse texto (como
exemplar de um determinado gênero discursivo) na sociedade?
·
A que ações sociais podemos
relacionar este texto? Por quê?
·
O que esse texto revela sobre o
locutor? E sobre a situação em que foi produzido?
·
O que o texto espera que eu
faça depois de ler esse texto?
Essa
última pergunta é pertinente: nem sempre o texto espera que o leitor faça a
mesma coisa que o professor. Por exemplo, voltemos à receita culinária levada
para sala de aula: o texto espera que o aluno a siga, a experimente, mas nem
sempre será isso o que professor espera!
Ao
compreendermos a intenção comunicativa de um texto, podemos também escolher até
que ponto desejamos participar no processo comunicativo que ele propõe. Isto é,
adequando o que lemos às nossas
necessidades, possibilidades, desejos etc.
A
escola, como instituição, no entanto, tem sido muito eficiente em 'matar' as
intenções comunicativas dos textos. E isso em todos os componentes
curriculares. A escola faz isso, principalmente, de duas maneiras:
(1)
por reduzir os textos a
intenções distorcidas daquelas que os originaram
(2)
por ignorar o processo social
que deu origem a tais textos e que pode, muitas vezes, ser resgatado no próprio
texto.
Naturalmente,
a dificuldade diante da intenção comunicativa de um texto, a partir do gênero
discursivo a que esse pertence, não se dá apenas no ato de recepção. No próprio
momento de produção podemos encontrarmo-nos em uma situação de desejarmos que
um determinado gênero discursivo cumpra uma função que não lhe cabe. Um exemplo descabido: O que pensaríamos de
alguém que deseja cobrar uma dívida utilizando-se não de uma nota promissória,
mas de uma receita culinária? Sim, isso é não respeitar a intenção comunicativa
do gênero discursivo receita culinária.
Mas o
que pensar de enunciados escolares descontextualizados da realidade que deu
origem ao texto e que vão ficando famosos na prática escolar: "Sublinhe os
adjetivos no texto a seguir" ou "No texto aparece o termo 'reação
bioquímica'. Defina-o.”?
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