17 de dezembro de 2010

RUMO A UMA PRÁTICA ESCOLAR DA CRIATIVIDADE

A definição de Carl Rogers para CRIATIVIDADE, encontrada no capítulo "Towards a theory of creativity", do livro Creativity, publicado já em 1970 é a seguinte: “o processo criativo é a emergência em ação de um produto relacional novo, resultante por um lado da unicidade do indivíduo e por outro dos materiais, eventos, pessoas ou circunstâncias de sua vida”. Parece-nos uma definição ainda muito válida e produtiva para o ambiente escolar.

Ou seja, a criatividade relaciona a personalidade do indivíduo criador com o momento que ele vive: os materiais que têm à disposição, o contexto sociocultural, as pessoas ao redor, o momento histórico de sua vida.

Desenvolver a criatividade, portanto, em nossos educandos, é um processo delicado e complexo, que exige a constante atenção. Não basta deixá-los soltos, fazendo o que bem quiserem. Mas tampouco podem ser dirigidos a ponto de sentirem-se sem uma interpretação pessoal do mundo em que vivem. Essa interpretação pessoal do mundo em que vivo é que, quando revela efetivamente quem eu sou, demonstra a criatividade que desenvolvi.

29 de novembro de 2010

SOBRE PLANEJAMENTOS, COMPETÊNCIAS E HABILIDADES

A seguinte história é de domínio público e é contada, pela tradição, de diferentes formas, ela fala do filósofo e do barqueiro:


Desejava o filósofo atravessar para o outro lado do rio. Uma vez que naquele caminho não havia uma ponte, contratou os serviços de um humilde barqueiro. Enquanto se deliciava com a paisagem, perguntou, um tanto em tom de troça, ao barqueiro:

“O senhor veja está paisagem! Isto me remete a Aristóteles... O senhor sabe quem foi Aristóteles, não?”


O pobre barqueiro, muito sem graça, limitou-se a dizer:


“Não sei não senhor!”



O filósofo em tom de reprimenda, acrescentou:


“Meu senhor, sem saber quem é Aristóteles, o senhor perdeu metade de sua vida!”


Um pouco mais adiante, o filósofo retornou:


“Bem, a tranquilidade destas águas! Isto me lembra Platão! O senhor, certamente, sabe quem foi Platão?”


Mais uma vez, o barqueiro teve de responder:


“Não sei não senhor!”


Mais uma vez o filósofo decepcionado, mas achando certa graça em humilhar o pobre barqueiro, disse:


“Ai, ai... O senhor, sem saber quem é Platão perdeu metade de sua vida!”


Iam nisso, o filósofo a puxar conceitos e vultos importantes da Filosofia e o barqueiro a sentir-se cada vez mais incapaz quando, de repente, o barco vira. O barqueiro rapidamente nada para a margem e, quando se dá conta, vê o filósofo se debatendo em vão contra a correnteza. O barqueiro grita:


“Doutor, nade rápido até a margem!”


Ao que o filósofo diz:


“Eu não sei nadar!”


E enquanto o filósofo se afundava nas águas do rio, ouvia o barqueiro dizer:


“O senhor, sem saber nadar, perdeu é sua vida inteira!”


(O barqueiro e o filósofo. Domínio público)


Qual a moral da história? Que não devemos estudar filosofia? Que o conhecimento não importa? Que basta saber nadar para ser feliz?


Sabemos da importância do estudo continuado para sermos bons educadores. Como síntese, podemos lembrar as palavras do educador Paulo Freire:


“Não podemos basear nossa crítica a um autor na leitura feita por cima de uma ou outra de suas obras. Pior ainda, tendo lido apenas a crítica de quem só leu a contracapa de um de seus livros”. (FREIRE, PAULO. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra, 1996, p. 16.)


O importante não é depreciar o conhecimento, mas dispor de diversos conceitos teóricos que nos permitam tomar a melhor decisão prática de acordo com o problema ou situação desafiadora que enfrentarmos, em um determinado lugar e momento histórico. Isso exige conhecer, interpretar a realidade e adequar-se a ela de modo crítico e questionador. Somos lembrados por Lino de Macedo que


“Temos muitos problemas a resolver, muitas decisões a tomar, muitos procedimentos a aprender. Isso não significa, obviamente, que dominar conceitos deixou de ser importante.(...) Vivemos em uma sociedade cada vez mais tecnológica, em que o problema nem sempre está na falta de informações, pois o computador tem cada vez mais o poder de processá-las, guardá-las ou atualizá-las. A questão está em encontrar, interpretar essas informações, na busca da solução de nossos problemas ou daquilo que temos vontade de saber” (MACEDO, Lino de. Competências e Habilidades: Elementos para uma reflexão pedagógica. Disponível em: http://www.cefetsp.br/edu/eso/competenciashabilidades.html)


Já vimos a importância de planejarmos nossas ações educativas. De um jeito um tanto diferente daquilo que muitos de nós fomos levados a pensar, o que se mostra eficiente no processo de realização de um planejamento adequado a um trabalho sócio-educacional com jovens é partir sempre do desenvolvimento de competências e habilidades, não do acúmulo de conceitos.


Por competência, referimo-nos aqui, essencialmente, ao que Lino de Macedo denomina como ‘competência relacional’, mas que podemos denominar ‘macro-habilidade’ e que se alicerça na capacidade do indivíduo relacionar diferentes conhecimentos em uma situação específica. O exemplo de Lino de Macedo toma o bom jogador de futebol: não é um bom jogador de futebol aquele que, simplesmente, sabe chutar a gol, fazer embaixadas, correr com a bola no pé, mas aquele que sabe coordenar todos esses conhecimentos em uma determinada partida de futebol.


As variadas habilidades somam-se e interagem entre si para que o jogador se mostre competente em campo. Assim, não apenas saber chutar a gol, mas identificar o momento mais adequado de chutar a gol deve coordenar-se com a habilidade de analisar as diferentes opções de jogadas disponíveis e tudo isso de modo rápido, quase instantâneo. Desse modo se revelará o jogador competente. As habilidades, desse modo, coordenam-se entre si formando macro-habilidades ou competências.


E quais são as competências que devem ser privilegiadas em um processo educativo e formativo de crianças e jovens?



Os estudiosos não são unânimes na formulação dessa resposta. Algumas respostas que vale a pena conhecer são:




• “Aprender a ser;


• Aprender a conviver;


• Aprender a fazer;


• Aprender a aprender.”


(DELORS, Jacques)





• “Domínio da Lecto-Escritura;


• Capacidade de fazer cálculos e de resolver problemas;


• Capacidade de compreender, analisar, interpretar e sintetizar dados, fatos e situações;


• Compreender e operar seu entorno social;


• Receber criticamente os meios de comunicação;


• Acessar informações;


• Trabalhar em grupo.”

(Bernardo Toro)




• ”Confiança: Sentir-se capaz de fazer;


• Motivação: Querer fazer;


• Esforço: Disposição de trabalhar duro. Superar dificuldades;


• Responsabilidade: Fazer o que deve ser feito. Fazer correto;


• Iniciativa: Passar da intenção à ação;


• Perseverança: Terminar o começado;


• Altruísmo: Sentir preocupação pelo outro;


• Sentir Comum: Ter bons critérios ao avaliar e decidir;


• Solução de Problemas: Por em ação o que sabe e o que é capaz de fazer”


(Centro Latino-Americano de Investigações Educacionais)




• Leitura e interpretação de diferentes textos em diferentes linguagens: narrativos, poéticos, informativos (inclusive textos didáticos); mapas, fotos, gravuras, documentos de época, depoimentos, desenhos, esquemas, gráficos e tabelas, etc..


• Escrita: produção de textos diversos em diferentes linguagens; organização e registro de informações.


• Expressão oral: exposição de idéias com clareza; argumentação coerente; analisar argumentações de outras pessoas.


• Análise e interpretação de fatos e idéias: coleta e organização de informações; estabelecimento de relações; formulação de perguntas e hipóteses.


• Mobilização de informações, conceitos e procedimentos em situações diversas.


(Associação Cultura Franciscana - ACF)


Quando cabe ao educador definir, no planejamento, essas competências, deve manter bem claro o grupo em que elas deverão ser desenvolvidas. Manter a realidade no horizonte é essencial para encontrar uma lista prática de competências a desenvolver em um determinado período em um trabalho sócio-educativo.

O certo é que desenvolver uma competência não é o mesmo que apresentar um conceito ao grupo. Não se desenvolve a leitura e a escrita, como macro-habilidade relacional, apenas dando definições do que é ler e escrever. Tampouco se desenvolve a perseverança simplesmente fazendo sermões sobre como é importante acabar o que se começa. É necessário pensar ações que mobilizem os adolescentes e jovens sob os nossos cuidados. Daí, mais uma vez, a importância do planejamento adequado.



Levando em conta a necessidade de articular o conhecimento que o estudante traz sobre um tema com as novas informações, a partir dos elementos novos que estão mais próximos desse conhecimento que o estudante tem. A esse conhecimento prévio que o educador pesquisa do universo do estudante para adequá-lo às informações novas chamamos avaliação diagnóstica.

O planejamento adequado leva em conta a voz, a personalidade, o espírito do outro.

25 de novembro de 2010

COMO CONVERSAR COM UM ESTUDANTE?

Educar é também o ato da liderança e da conversa com um estudante. Assim, vale a pena refletir: "Como iniciar uma conversa?"



Uma conversa só começa, de fato, quando aquele a quem nos dirigimos se encontra disposto e receptivo. Se alguém ainda estiver ocupado com outra coisa, com os pensamentos em outro lugar, ela não está em condições de escutar.


É necessário, primeiro, encerrar no interior dos pensamentos e sentimentos a outra ocupação. Desse modo é que esse a quem nos dirigimos poderá começar a escutar-nos.


Para dar início à conversa chame aquele a quem você se dirige pelo nome. Quando alguém o chama pelo nome, você sabe que ele está se dirigindo a você, de modo pessoal. Mas, cuidado, o nome deve ser corretamente pronunciado.


A seguir, confirme que o contato ocorreu. Isso se dá pelo olhar. O contato pelo olhar permite avaliar se a interação foi estabelecida. No olhar daquele a quem você se dirige, procure os sinais para saber como ele se sente, o que está se passando na sua alma. O contato do olhar permite que o outro se sinta dignamente respeitado.


Faça, então, uma pequena pausa para tomar fôlego. Só depois comece a falar. Essa pequena pausa permite ao outro entrar em sintonia com você. Ao concentrar-se sobre a sua própria respiração, você entra em contato com o seu próprio ânimo e com os seus sentimentos. Esse autocontrole, aclara a situação e facilita a relação com o interlocutor.

11 de novembro de 2010

SEMIÓTICA APLICADA À EDUCAÇÃO: Campo fértil para pensar a prática docente

“A Semiótica e a Educação têm muito em comum: ambas almejam o conhecimento de tudo.”

Na rua, observo uma senhora parada, esperando o semáforo abrir, enquanto enxuga o suor do seu rosto. Encaro o gesto como um indício do seu cansaço. Suas roupas me dizem que ela é uma mulher simples. O semáforo vermelho, por outro lado, me diz para esperar. A placa da rua sinaliza-me onde estou. Um carro passa com o som alto, ouve-se uma música popular que parece não combinar com o valor do veículo.

O ser humano é, antes de tudo, um ser intérprete e o mundo está cheio de significados a serem construídos: gestos, cores, letras, acontecimentos, objetos etc pedem, a todo o momento, para serem interpretados. A tudo podemos atribuir um significado. O campo do conhecimento que se preocupa com o significado, tal como ele é construído no mundo, seja por meio de palavras, gestos, cores ou por tudo aquilo a que podemos atribuir sentido é a Semiótica.
A Semiótica estuda o significado que os intérpretes constroem por meio de signos. Um signo é formado por um significado (aquilo que o signo significa) e um significante (o que usamos para representar o significado). Há dois tipos de signos que, particularmente, nos interessam em nossa exposição: os ícones e os índices.
O ícone será aqui considerado como um signo que procura a semelhança entre o significado e o significante. Um mapa apresenta-se como um signo que procura traduzir as baías, cabos e outros acidentes geográficos com o maior rigor possível, aproximando-se ao máximo da realidade, até mesmo por meio do uso de escala.
Quanto mais próximo da realidade que deseja ‘retratar’, maior a iconicidade do signo. Assim, a fotografia a seguir:
se revela com um nível maior de similaridade com a realidade do que esta representação:
Índice será definido, aqui, como um signo em que há uma relação física ou causal entre o significante e o significado. Por exemplo, uma alteração do termômetro pode indicar que o tempo esfriou e, por isso, precisamos sair à rua mais agasalhados. Um olho roxo é indicio de que alguém levou um soco.
A presença de fumaça
indicia a existência de fogo:
Como se diz: onde há fumaça, há fogo.
Mas, há uma diferença sempre clara entre ícone e índice?
É fácil ver em um mapa um bom exemplo de ícone e em um olho roxo um exemplo adequado de índice. Contudo, no universo de signos que nos rodeia, nem sempre é fácil distinguir um ícone de um índice e, por vezes, essa distinção cabe unicamente ao intérprete, aquele que interpretará o signo. Além disso, a relação indicial entre o significado e o significante nem sempre será percebida da mesma forma por todos os intérpretes.
Alguém poderá ver em um signo, uma imagem, por exemplo, apenas o significado imediato que ela propõe. Outro, procurará compreender esse mesmo signo, digamos, uma imagem procurando a relação causal entre o significante e o que está sendo representado encontrando nela uma relação causal diferente daquela que um terceiro poderia construir.
Isso se torna especialmente interessante ao pensarmos no universo da Educação. Por exemplo, o que é uma prova: um ícone que traduz o significado “quem é o aluno?” ou um índice que nos encaminha para diferentes relações causais? E que relações causais são essas?
Circula entre professores, mais em tom de piada do que sério, o comentário: “Menino, eu já expliquei dez vezes a mesma coisa e você não entendeu?”. Se onde há fumaça, há fogo, o que nos indicia tal comentário sobre fazer pedagógico?

Tanto ao analisarmos uma nota baixa em uma prova ou ao depararmo-nos com um aluno que não compreende uma explicação podemos ver, facilmente, um aluno com limitações, do mesmo modo que ao vermos uma baía em um mapa de uma determinada ilha sabemos que ela corresponde a uma baía na geografia real dessa ilha. Outros, no entanto, procurarão, de modo mais cauteloso, uma relação causal, mas qual? O estudante não estuda o suficiente? O estudante não presta atenção às aulas? O estudante está com problemas pessoais? Ou, em outra direção: as aulas e/ou as explicações não estão atingindo os objetivos propostos? Os conteúdos abordados não são os indicados para esse grupo de alunos? Faltam conhecimentos que deveriam anteceder aos que agora estão sendo abordados.


Cada uma dessas causas aponta para caminhos diferentes de solução. Algo que deve ser feito, não apenas compreendido. Sempre me parece mais prático considerar uma avaliação, seja formal – como uma prova – ou não, como a correção de um exercício, como a possibilidade de indiciar o que pode ser feito para melhorar a relação de ensino-aprendizagem, para que o alunos, sujeito da aprendizagem, efetivamente aprenda e desenvolva as habilidades objetivadas.

Claro que o sentido de considerarmos um momento de avaliação do aluno como índice, procurando causas, é o de tomar as providências apropriadas para sanar os problemas identificados. Não para transferir responsabilidades.

Aqui entre nós, contudo: se eu explicar dez vezes a mesma coisa para alguém e esse alguém não entendeu nada do que eu disse, antes mesmo de tentar entender o porquê, eu já me dei conta de que terei de mudar o jeito de explicar. Talvez nem chegasse à décima explica explicação. Talvez depois de explicar duas ou três vezes a mesma coisa, do mesmo jeito, procurasse caminhos diferentes.

30 de outubro de 2010

AFINAL, PARA QUE SERVE A ESCOLA?

Escola para quê?


Usualmente me chamam para conversar com pais e professores (raramente ao mesmo tempo, diga-se) sobre a necessidade de um novo olhar para a educação. Mudar a educação, melhorar a educação, pensar em novas realidades... Muitas vezes, chego ao final da conversa um tanto desanimado. Tanto com pais como com professores. Em algum momento, muitas vezes já logo no começo da conversa, surge a pergunta: "E o vestibular?".

A experiência já me mostrou que essa pergunta é mais uma forma de resistência ao novo do que a preocupação com o processo seletivo em si mesmo. Processo esse que tem passado por significativas transformações e, de algum modo, procurado aproximar-se de concepções mais atualizadas de educação. Em especial, no que respeita à linguagem, caminho privilegiado para a construção do conhecimento e da identidade no século XXI.

O que me decepciona ao se trazer o vestibular para a discussão é que ele ainda assume, no imaginário do pais e demais educadores, o destino final da educação formal fundamental e média. Discussão sobre cinema? Educação do corpo? Relações entre mídia e cotidiano? Drogas? Formação do leitor? Tudo isso sim, mas desde que não atrapalhe o vestibular. E não o vestibular atual, cada vez mais interessado nessas questões, mas um vestibular imaginário, fossilizado na dificuldade em aceitar o novo.

Fala-se muito em educação de qualidade, mas eu, por vezes, questiono até que ponto, efetivamente, desejamos essa qualidade. Educarmo-nos para pensar o presente, construir o novo, dialogar com o passado, reformular a sociedade, transformando-a, isso tudo é trabalhoso, lento, aparece menos do que gostaríamos. Educação para o vestibular é algo imediato, aparece fácil, dá resultados. Mesmo que esse vestibular não seja competitivo e apenas venda a ilusão de que se 'passou' nele. Mesmo que depois do vestibular da FUVEST ou da Unicamp o estudante não consiga acompanhar o curso por falta de habilidades. Pouco importa.

Em política ocorre algo parecido: preferem-se asfaltar ruas a fazer saneamento básico. Uma rua asfaltada vende mais o futuro candidato a alguma coisa. O saneamento básico não dá votos. Pouco importa se, com isso, dissemina-se a ideia de morte. Sempre se achará uma terceira via para dize que a culpa é do outro.

No futebol e no mundo do entretenimento também é assim: o 'famoso' é pego drogado, fazendo escândalo, sendo mau exemplo só para pouco depois aparecer com ar de vítima dizendo que ele sempre foi uma pessoa decente e que retomou o seu 'verdadeiro eu'.

O 'verdadeiro eu' não é algo dado, se elabora todos os dias a partir das escolhas que fazemos, cotidianamente.

Educação para construirmos o verdadeiro eu, um ser legitimamente atuante no mundo ou alguém hipócrita que se esconde atrás de fórmulas prontas, tais como o vestibular imaginário.

23 de outubro de 2010

O OLHAR QUE VIU A BIENAL

Ontem, em uma reunião de trabalho, uma educadora falou sobre a importância de 'educar o olhar'. Gosto muito dessa expressão. Fiquei atento a como foi empregada. A educadora mostrava-se experiente em seu fazer e paixonada pelo que faz, tanto que fiquei tentado a perguntar-lhe como ela mantém a paixão 35 anos depois, mas o pudor me impediu de fazê-lo. Empregou a expressão com muita acuidade, como quem sabe que na palavra olhar cabe o conhecimento, a sensibilidade, a cultura, a compreensão de si mesmo, do outro e do estudo.
Falávamos do corredor da escola. Os alunos fazem trabalhos interessantes que depois vão ser 'expostos'. Essa exposição, muitas vezes, se reduz aos trabalhos serem colados nos corredores da escola, em áreas de passagem. Apenas para serem aos poucos (ou rapidamente!) destruídos por colegas negligentes.
Vivo em São Paulo, cidade da Bienal, do Museu da Língua Portuguesa, do MASP, da Pinacoteca... Mas, mesmo antes de aqui viver eu já tinha ido a exposições e a museus, claro.
O último grande evento de que participei foi a visita à Bienal de Artes. O meu olhar, inquieto, pensou nos trabalhos dos professores no corredor. Não que eu tenha visto, na Bienal, a perfeição em se expor a arte. Como outros, considerei-a um tanto confusa e fiquei, por momentos, desorientado. Além disso, não cheguei a ver os urubus e fiquei como outros comentando o espaço vazio. Mas, sem dúvidas, notava-se que havia ali uma preocupação em expor, em fazer com que o caminhar entre as obras fosse também, de algum modo, uma experiência cultural.
Esse é um (mais um...) desafio para o meu olhar de educador: como fazer com que o caminhar entre os trabalhos dos nossos alunos seja mais do que colar tais trabalhos no corredor na esperança de que sobrevivam mais do que período?

27 de setembro de 2010

A EDUCAÇÃO DO OLHAR NA PÓS-MODERNIDADE

O norte-americano Paul Jackson Pollock (1912-1956) foi uma das principais referências movimento artístico denominado expressionismo abstrato. Sua esfera de arte nos encaminha para o inconsciente, para a pintura pura, sem justificar-se pela forma ou pelo conteúdo, propondo um mergulho no interior humano. Confira:



Observe, agora,  esta foto de Jackson Pollock trabalhando feita pelo fotógrafo Hans Namuth:
A obra de Pollock faz parte da cena, compondo uma visão doce do ato criativo do artista. Esse processo de criar arte se torna o principal elemento da fotografia. O artista e a obra se assumindo papéis secundários.
Em 1997, o artista Vik Muniz produz a foto Ação I:
  
Muniz copiou a fotografia de Namuth e a reproduziu em calda de chocolate. Depois, fotografou-a. A metáfora da criação artística como um processo doce fica em relevo, mas também pode ser lido como um algo efêmero, visto que o que nos resta é a foto da obra, enquanto a obra em si, feita de chocolate, teve vida curta.

Para a pós-modernidade, o significado de qualquer imagem está não na intenção do autor, mas na referência que essa imagem constrói com outras imagens ou sinais. Isso exige que o ‘público’ faça constante uso de sua memória: dos conhecimentos armazenados e das experiências pessoais vividas. É essa interatividade criativa que se constitui entre o eu e o outro que somos, como educadores, convidados a construir.




6 de julho de 2010

UM OLHAR SOBRE IDEOLOGIA E CONTRAIDEOLOGIA, DE ALFREDO BOSI: PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Comecei a ler Ideologia e Contraideologia, de Alfredo Bosi (2010). Ainda muito cedo para formar uma opinião, é verdade, mas tenho quase certeza de que vou gostar do livro. O motivo primeiro é muito simples: sou fã do autor. De qualquer modo, o que me leva a escrever estas linhas é que não deixo de pensar como professor, mesmo quando não o desejo. Acompanhar o primeiro capítulo foi também pensar em como os discursos circulam na escola e para onde conduzem os educandos. Tentarei me explicar melhor.


Ao escavar a pré-história da palavra “ideologia”, Bosi nos conduz à cultura renascentista, a uma Europa que se permite denunciar as correntes hegemônicas que a constituem. Não, naturalmente, sem muitos problemas para aqueles que desejavam questionar o tido como normal. Bosi aponta que, no século XVI, os principais discursos hegemônicos eram

“os dogmas recém-promulgados pelo Concílio de Trento e pela Contrarreforma, ou, do lado oposto, pela teocracia implacável de Calvino fundada na doutrina da predestinação;

a apologia da perseguição aos judeus, que marcaria ainda todo o século XVII;

o direito divino dos reis (...);

a censura à nova ciência e ao livre-pensamento (...);

o triunfo da imitação estilística dos Antigos elevada a norma da retórica maneirista que prenuncia o barroco internacional” (BOSI, 2010: 15,16).

A tentação deste leitor foi, de imediato, a tentativa de identificar os principais discursos hegemônicos da atualidade. Após pensar na hipervalorização do consumo e do sexo, a superficialidade manifestada tanto nas relações pessoais como na relação com tudo o que se constitua alheio, a facilidade para a ruptura com a memória e a tradição e um longo etc que me fez considerar que eu deveria parar um pouco para pensar antes de continuar. Fica para outro dia.

O que me pareceu curioso é que Bosi aponta que nesse primeiro momento de constituição do que hoje chamam ideologia, encontram-se o discurso satírico e o utópico, como meios de desmascarar as realidades presentes e apontar novas possibilidades. Agora, meu pensamento chegou à Escola, como proposta curricular: saber olhar! E os olhos que se detém no normal inquirindo a normalidade que ali se vê. O olhar que vê e que anuncia aquilo que vê, com sensibilidade e cautela (Por mais idealista que seja, não gostaria de ser decapitado como Thomas Morus), mas também com bom humor e esperança.

Os discursos utópico e satírico bem que poderiam ocupar uma boa parte do fazer curricular de uma Escola, não pelo que eles representaram no século XVI e XVII, mas pelo que eles permitem atualmente: indagar e fazer indagar, sonhar e, desse modo, começar um projeto.

Escrevo tudo isto com muita liberdade, como leitor que saboreia as páginas do que lê...
 
BOSI, Alfredo. Ideologia e Contraideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

30 de junho de 2010

SOBRE SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS...

O professor Antoni Zabala (1998: 18) defende que as pensar na configuração das sequências de atividades ou sequencias didáticas (ele usa os dois termos como sinônimos) é um dos caminhos mais acertados para melhorar a prática educativa. O mesmo professor define essas sequências de atividades como


“um conjunto de atividades ordenadas, estruturadas e articuladas para a realização de certos objetivos educacionais, que têm como um princípio e um fim conhecidos tanto pelos professores como pelos alunos”. (ZABALA, 1998:18).

Seguindo essa linha de raciocínio, podemos esboçar, em traços gerais, a estrutura de uma situação de aprendizagem que possibilite construir os processos sociais de ensino-aprendizagem. Nesse processo proponho a seguinte organização:

1) Momento de problematização: esse é o momento de questionar, de fomentar dúvidas, de conhecer o pensamento do outro, de saber de onde se irá partir e esboçar antecipações sobre para onde chegaremos. Em grande parte dos casos, como ao analisar um filme, basta uma pergunta que motive um questionamento ou comentar uma música (ou, até, simplesmente, um trecho dessa música). Importante, contudo, que essa pergunta tenha uma relação direta com a realidade em que esse educando está inserido, aproxime o seu mundo daquele que será estudado.

2) Foco forte da consideração: no caso de um filme, na maior parte das vezes, vale mais a pena exibir apenas trechos selecionados. O importante é não deixar que se perca o foco fornecido pelo momento de problematização. Se as crianças e jovens não entenderem os motivos pelos quais estão assistindo àquele filme (e não a outro) ou os esquecerem durante esse processo, há grandes possibilidades do processo se perder.

No caso de um filme, sinta-se à vontade de parar de vez em quando a exibição a fim de ressaltar um ponto importante que tenha uma relação direta ao momento de problematização proposto inicialmente. Faça uso de perguntas e ouça as respostas com atenção.

3) Síntese: Ao final da atividade, é importante que os educandos sintetizem tanto a atividade como aquilo que aprenderam. Esse momento antecipa o que vem a seguir.
4) Reflexão: o momento de síntese não permite muita criatividade: trata-se de resumir o que aconteceu. O momento de reflexão, contudo, permite que se façam as mais variadas relações que vão da opinião pessoal sobre o processo até sugestões para as próximas atividades. Vejamos, agora, como exemplo, algumas das muitas perguntas que podem ser feitas:

• O que você aprendeu tão bem nesta atividade que consegue explicar sem dificuldades para um colega?

• Que assuntos não ficaram claros? Que temas você gostaria que voltassem a ser estudados melhor por não terem sido devidamente compreendidos?

• Como você pode melhorar a sua participação no grupo?

5) Transposição: O aprendizado construído deve agora ser aplicado a uma situação diferente daquelas que serviram de problematização e/ou de foco forte até aqui. Essa nova situação, contudo, deve manter elementos comuns suficientes para que as crianças e jovens, de acordo com o seu grau de maturidade, possa estabelecer as relações adequadas.

Outro filme? Se você trabalhou com um filme até agora, em algum momento, desta sequencia didática, talvez seja a vez de pensar em um jogo teatral ou em uma dinâmica de grupo e assim por diante.

Retome o questionamento presente no primeiro momento. Permita que os educandos percebam, eles mesmos, o quanto avançaram nessa sequencia didática.



ZABALA, Antoni. A prática educativo: como ensinar. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

18 de junho de 2010


18 de junho de 2010: Estamos todos muito mais pobres. 

José Saramgo morreu

9 de junho de 2010

DO PRÉ-LEITOR AO LEITOR: O PROCESSO ESCOLAR

Este breve artigo pretende auxiliar ao professor a trabalhar, nas aulas de Língua Portuguesa, a formação de um leitor. Objetiva-se auxiliar ao professor no seu paciente trabalho de análise e seleção de que literatura levar para classe, despertando o prazer de ler.


Ler e alfabetizar não são necessariamente a mesma coisa. A leitura deve começar antes mesmo da alfabetização, utilizando-se como primeiro instrumento do livro sem palavras. Por se tratar de histórias que não exigem o código verbal escrito, a criança pode, por meio de recursos visuais, atribuir sentidos nesse espaço vivo que é o texto e criar a sua própria leitura. Tais livros servem também como ponto de partida para alunos, que alfabetizados, não gostam de ler.

Para tanto, é preciso lembrar que literatura não é principalmente pedagogia e que sua principal intenção reside em proporcionar prazer. Por prazer entendemos, como nos diz o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “sensação ou sentimento agradável, harmonioso, que atende a uma inclinação vital”. Inclinação vital... Sentir a necessidade do livro para que a vida seja, efetivamente, vida. O professor deve, de forma lúdica, propor alternativas de leituras, releituras, discussões. Procurando contrapontos com outros textos, deve estabelecer ligações entre o novo e o que já é conhecido pela criança. O novo é sempre descoberta, e atrai pela inata curiosidade infantil. O conhecido representa a segurança do caminho já percorrido e que sabemos aonde nos conduz. Do equilíbrio entre os dois a criança se descobre capaz de ser leitora, criando pontes entre os diversos mundos que a rodeiam. Nesta fase, torna-se de fundamental importância apenas a sensibilização, sem cobranças ou avaliações de qualquer espécie. Afinal, ler é, em si mesmo, uma atividade.

Aos poucos, o aluno está preparado para receber a força mágica da palavra. Sente-se à vontade com os livros e demonstra prazer de leitura. Este contato ainda estará sob o atento cuidado com as ilustrações, no sentido de reforçar o que está sendo dito. A ilustração pode até mesmo possibilitar novas e diferentes maneiras de ir além do texto, recriando-o e dando asas à imaginação.

São importantes recursos lingüísticos que auxiliam tanto na alfabetização, como na leiturização, as diferentes explorações sonoras da palavra dentro do texto, como a rima, a sonoridade e a repetição. O tema tem que despertar o interesse por estar de acordo com a realidade da criança, isto é, a visão de mundo que ela possui até o momento da leitura. Certos aspectos gráficos não podem ser desconsiderados: as letras grandes, o texto curto e o grau de complexidade de compreensão, simples.

À medida que a leitura vai evoluindo, o plano gráfico vai se alterando, e as letras passam a ter um tamanho menor, as ilustrações vão deixando de assumir um papel centralizador dentro da obra. Os períodos podem ser mais elaborados e o texto tende a, naturalmente, alargar-se. O tema já não se limita apenas ao universo da criança, mas projeta-a para o mundo que a cerca, estimulando-lhe que desenvolva o senso crítico.

O aluno é livre para escolher os títulos, mas estes, por sua vez, foram selecionados e analisados previamente pelo professor. Este devera usar de muito bom senso para observar que visão de mundo o autor transmite, evitando assim que o pequeno leitor entre em contato com obras de valor literário duvidoso.

Vale lembra que cada criança tem a sua maturação em etapas e épocas distintas. A leitura permite novas concepções da vida. A cada novo livro, novas reflexões, que aliadas ao pleno domínio da linguagem, tornar-se-ão instrumentos indispensáveis ao exercício da cidadania.

24 de maio de 2010

A FRUSTRAÇÃO DO LER E ESCREVER EM SALA DE AULA

A instituição escolar adotou com muita facilitade e, penso eu, até sem a devida reflexão, as 'novidades' de "gênero textual". Essa mudança corre o risco de transformar a leitura e a escrita em realidades tão artificiais, travestidas de 'novo', como sempre o foram. Ou seja, mudar no que chamo de 'maquiagem da educação', mas sem, de fato, efetuar uma verdadeira mudança...


O reconhecimento de que existem diversos gêneros de textos ao pensarmos no ambiente escolar, conduz-nos a uma jogo tênue entre forças nem sempre em equilíbrio que envolvem, de um modo muito simplificado, o embate entre a classificação e o uso social.  Quando falamos que tal texto é polêmico ou que aquele texto é didático damo-nos, empiricamente, conta de que os textos não são iguais e que eles podem ser classificados segundo um critério lingüístico ou social. É claro que é praticamente impossível distinguir as fronteiras entre o que é lingüístico e social em um texto, em se tratando de classificação tipológica, pois a linguagem se realiza em sociedade. 


Quando falamos em conta telefônica, editorial, receita de bolo, fábula, parlenda estamos rotulando os textos a partir de um conceito de gênero que exige "um pacto de percepção comum" negociado entre instâncias que ocupam lugares sociais distintos. 


A mudança histórica desses lugares sociais pode levar ao desaparecimento de um determinado gênero textual e discursivo e ao surgimento de outros. O gênero conta telefônica supõe a existência de empresas de telefonia, públicas ou particulares, e de usuários de telefones que usam os serviços oferecidos por tais empresas. Se, por um motivo qualquer, o telefone desaparecesse dos hábitos da sociedade, sendo substituído, talvez, por outro aparelho, o gênero conta telefônica desapareceria. Poder-se-iam constituir outros gêneros, como a conta desse novo e hipotético aparelho que substitui o telefone em nosso exemplo. Mesmo que pensemos, da forma mais ampla, em "conta", podemos raciocinar que em certas sociedades, em outras épocas, esse texto era algo desconhecido.


Como temos insistido, levar o texto para a sala de aula ganha um novo e profundo sentido que se leva junto a dinâmica social da qual ele participa. Claro, como na maioria das coisas, também aqui é mais fácil falar do que fazer...



Muitos dos gêneros textuais tornam-se meros rótulos com os quais o professor elabora o seu modo de trabalhar. O aluno estuda resenha na aula de português mas não usa o que ali aprendeu em nenhuma outra disciplina, o que faz o seu aprendizado um conhecimento tão pouco prático como saber que Cáfila é o coletivo de camelos ou que a dissertação científica ideal deve ser totalmente neutra.

Muitos professores, das mais variadas disciplinas, de fato, preocupam-se em mandar ler e escrever. O problema, nesses casos, está no como, na formulação da atividade. E, muitas vezes, fazem os alunos pagar as consequências de escolhas mal formuladas. Vejamos um exemplo:

"Faça uma pesquisa e escreva um texto sobre a África" é um enunciado comum na escola. O professor sente-se realizado pois exige que o aluno leia e escreva. Como censurar essa atitude? Ocorre que uma comanda como essa pouco ou nada, efetivamente, comunica aos alunos. É maior a quantidade de elementos que a comanda 'não diz' do que aquilo que ela efetivamente informa: Pesquisar o quê sobre a África? Como? Onde? Escrever o quê? Um relatório? Um ensaio? Uma resenha? Uma síntese? Um mapa conceitual? Escrever para quê? Que destino terá esse texto escrito? Será lido apenas pelo professor? pelos colegas? pelos pais?

É claro que o primeiro passo para o êxito com o trabalho em sala de aula com um gênero de texto é a competência do professor em lidar socialmente com tal espécie de texto. Muitas vezes, o que se nota quando o professor trabalha em sala de aula com textos com os quais não possui familiaridade é um desconforto na atividade que chega aos alunos como sintoma de falta de aprendizado. Ou seja, por vezes, os alunos tomam a incompetência do professor em efetuar uma performance adequada como leitor de um determinado texto como sintoma de incompetência profissional, como se não estivessem aprendendo nada em sala de aula. Em certos casos isso resulta ser uma das causas de problemas na disciplina ou de falta de interesse.

A solução? Cuidar do 'autoletramento', ou seja, o professor deve ter as condições e possibilidades de ampliar o seu próprio universo de relação com textos reais e significativos no cotidiano social em que ele está inserido. Um planejamento construído em conjunto e devidamente orientado pela coordenação pode auxiliar a que uma vez aprendidos, em sala de aula, a resenha, o ensaio ou o artigo de opinião, eles possam ser pedidos nas mais variadas disciplinas, para atender à demanda do jornal escolar, do blog da turma, do site da escola etc.

Ainda em outras palavras: professores, coordenadores e diretores, devemos estudar mais...

22 de abril de 2010

LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO: entre o Quase e a Ação

“Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção...
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!”

(Álvaro de Campos [Fernando Pessoa]. “Quase”)

Com estes versos, Fernando Pessoa inicia o poema “Quase”. Nele, encontramos inicialmente o que seria o desejo de um projeto, algo que significaria mudanças na vontade e na ação: “arrumar a vida”. E quem de nós, em algum momento, não desejou 'arrumar a vida'? Mas logo em seguida a nossa expectativa de leitores se rompe, o eu-poético se esconde na segurança do conforto proporcionado por saber-se, de antemão, “o mesmo resultado” – nada, efetivamente, muda. Se nada muda, por que eu vou fazer alguma mudança?

Arrumar a vida é, neste poema, afinal, um fazer as coisas ser do jeito que sempre foram. Acomodados nessa perspectiva considera-se “bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!”. Ou seja, melhor fazer qualquer coisa do que deixar tudo como está. Ou não?

As disciplinas no Ensino Médio sofrem, na prática escolar, um deslocamento semântico tornando-se não espaço para o caminhar do aluno no processo educativo rumo à sua formação integral (o que incluiria o Ensino Superior), mas instrumento para o qual avança todo, ou a maior parte, do aparato educacional rumo à aprovação nos vestibulares das “boas” Universidades.

As avaliações, por exemplo, ao invés de permitirem avaliar o aprendizado, os acertos e erros do processo, desde o primeiro momento, parecem dizer: “isto é o que vai acontecer com você se continuar do jeito que está!” e essa mensagem, encorajadora para alguns, ameaçadora para muitos, espelha o jogo de poderes da instituição escolar, refletindo quem detêm o poder de emitir os juízos de qualidade. Constatar o problema que representa tal visão vestibularesca é simples: deslocado para objetivo central, o vestibular tende a esvaziar os outros objetivos didático-pedagógicos que se tornam, em muitos casos, meras representações escritas. Aprender, no Ensino Médio, em termos práticos, equivale a obter bons resultados no processo avaliativo de um vestibular.

Ao se pensar no estudo da linguagem, em particular, a situação apresenta características próprias. Isso porque os vestibulares apresentam diferentes concepções de linguagem. No entanto, tende a vigorar o conceito de Língua Materna como elemento de interação e construção da identidade. A língua, nesse caso, deve ser estudada a partir de seu uso social e não de uma abstração hipotética e pouco realista. Para esse fim é necessário que o texto seja o grande centro da aula de Português. Isso porque as estruturas gramaticais, que ocupavam, anteriormente, o núcleo privilegiado do aprendizado, apenas existem nos textos falados ou escritos, os quais se agrupam em diferentes gêneros textuais que surgem de acordo com as necessidades sociais dos falantes.

Bakhtin  nos ensina que esses gêneros textuais atendem a campos ou esferas de atividade humanas e, por isso, seguem regras que não são apenas lingüísticas, mas também (ou, até, principalmente) sociais. Assim, ao escrever um e-mail para a namorada, o jovem estará seguindo regras de escrita bem diferentes daquelas que deverá utilizar ao redigir uma dissertação escolar. Além do mais, se por um lado, a gramática normativa insiste no uso ‘correto’ da mesóclise’, uma expressão como “fechar-me-ia a porta, por favor”, se utilizada no cotidiano, traria consigo uma carga expressiva de pedantismo e falsa erudição que dificilmente se associa ao conceito de ‘correto’. Da constatação dessas realidades e de sua inclusão na prática metodológica escolar é que se possibilita emergir o individuo que sente a Língua Portuguesa como legitimamente sua.

A linguagem é dialética, entendendo esse dialetismo como o resultado de um jogo de forças intensionais, próprias dos processos históricos e políticos de unificação que interagem com as forças extensionais do pluralismo e da polifonia. Em cada enunciado, com maior ou menor intensidade, as regularidades lingüísticas são sempre atravessadas pela subjetividade do enunciador e pela diversidade sócio-histórica, efeito desse jogo de forças intensionais e extensionais que atuam na expressão da linguagem.

É esse mesmo jogo que permite ao sentido de uma palavra ser determinado por seu contexto, embora ela nunca perca a sua unicidade, pulverizando-se em todos os contextos nos quais se insere. Essa unicidade dá-se porque as palavras funcionam “como sistemas de instruções orientadas para o texto” (ECO, 1983:18) e somente na enunciação desse ganham sentido. Dessa maneira, todo texto se apresenta como unidade de tensão, sujeito a leis de organização que transcendem o nível frástico e que definem estilos e sentidos, provocando também um constante conflito, produto vivo da língua.

Neste momento, podemos retornar a Fernando Pessoa. Na visão social dominante, corre-se o risco de simplificar-se o processo de mudança, em nosso caso, educacional, por não conseguir superar a relação que tais mudanças mantêm com as demais realidades sociais. Daí, uma mentalidade simplista que considera ser suficiente “ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa”, mesmo que as mudanças apontem, na verdade, para o “mesmo resultado”, uma falso lugar de segurança. Isso acontece com freqüência, na escola, quando se fala de centrar o currículo de Língua Portuguesa no texto. Para alguns, tudo isso não passa de ‘fazer [o novo] com o mesmo resultado’.

Examinando diversos materiais didáticos e as propostas curriculares em algumas escolas, o que se verifica é o texto aparecendo na maior parte das vezes apenas como pretexto para exercícios que maquiam estruturas pertencentes a um paradigma pedagógico anterior. Não se trata aqui de opor o ‘tradicional’ ao ‘moderno’, mas de incluir os avanços da Lingüística, da Semiótica e das Teorias da Educação no cotidiano escolar. A experiência nos mostra que nenhuma posição extrema é coerente com a realidade educacional com que nos deparamos.

Os textos verbais fazem uso de estruturas gramaticais; muitos desses textos necessitam da gramática normativa para a sua correta organização. No entanto, a frase é parte menor do texto e como o todo é maior que a soma das partes, estudar a frase, mesmo que incorporando esse estudo ao texto, não responde a todas as necessidades daquele que faz uso da língua nas mais diversas situações. Há estruturas que surgem das relações entre as frases, entre os parágrafos e, até, entre os textos que a gramática tradicional não dá conta e tais estruturas merecem ser abordadas no cotidiano escolar. Além disso, há o aspecto social da língua que como organismo vivo e pulsante se metamorfoseia continuamente. Não basta que o educando identifique a mesóclise, mesmo que em um texto que dela faça uso adequado. É necessário que se identifique o seu valor expressivo nas diversas utilizações possíveis dessa estrutura. Isso permitirá a reflexão e a construção da identidade lingüística. Ou seja, evitaremos que o aluno se sinta um estrangeiro ao utilizar-se de sua própria língua.

Centrar o ensino de Língua Portuguesa no texto requer o desenvolvimento de habilidades que transcendem uma visão reducionista do fenômeno lingüístico. Na prática, no entanto, isso exige que o professor de língua materna tenha acesso a conhecimentos, materiais didáticos e infra-estrutura para poder, efetivamente, coadunar ‘vontade’ com ‘ação’ pedagógica.

17 de março de 2010

O QUE É LITERATURA? Algumas discussões tendo a Escola na mira

Esse quadro chama-se "Retrato de Mona Lisa" e foi pintado por Leonardo da Vinci, que viveu entre 1452 e 1519. Naquela época, as pessoas vestiam-se de uma forma muito diferente dos dias atuais. A senhora nele retratada, Mona Lisa, com certeza, se fosse hoje, não sairia vestida à rua desse jeito. Muita coisa mudou com o tempo. Mesmo nas nossas vidas, percebemos diferentes mudanças: Com o tempo, mudamos a nossa maneira de pensar e ver o mundo. Coisas que nos pareciam muito importantes há um tempo tornam-se hoje algo quase sem importância.


É claro que nós mudamos, mas também tudo ao nosso redor mudou com o tempo. Todas as pessoas estão organizadas em sociedade e essa sociedade muda com o passar dos anos. A todo momento a vida muda e nos traz novas realidades. Porém, o curioso é que, apesar das mudanças, algumas coisas ficam e ficam por muito tempo. O quadro da Mona Lisa, de que falamos no início de nosso texto, ainda é considerado uma obra de arte. Muitas músicas, embora antigas, ainda são ouvidas ou, até mesmo, cantadas. Com certeza, conhece a música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira que inicia com a estrofe abaixo:

Quando olhei a terra ardendo

Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação.

"Asa Branca" é uma música que dificilmente pode ser esquecida. Isso porque ela fez parte da história da cultura de muitas pessoas. Pessoas que se deixaram emocionar pela beleza dessa composição. Uma emoção que se torna maior quando paramos para pensar na letra e entendemos o sofrimento do povo nordestino frente à seca. Há muitos textos cuja beleza atravessa o tempo, chegam até nós e, de alguma forma, nos emocionam. A esse conjunto de textos artísticos, assim como essa arte feita com palavras, chamamos LITERATURA.

Vamos recapitular, mudando a perspectiva: Todos os textos têm sempre uma finalidade. Escrevemos um bilhete para dar um recado a alguém e vamos ao dicionário quando não sabemos o significado de uma palavra ou não temos certeza de como ela se escreve. Há textos para todas as necessidades humanas, embora, é claro, nem sempre temos neles as respostas que queremos. Bem, há textos cujo objetivo é serem artísticos, provocar no leitor o bem-estar que a beleza nos pode dar. Esses são os textos literários. Bem, às vezes a beleza nos inquieta, como quando pensamos em por que alguém gosta de algo de que nós não gostamo. O ponto importante é que a literatura é uma forma de arte que utiliza a palavra como matéria-prima. Assim como para fazer pão necessitamos de farinha, para fazer literatura, necessitamos de palavras. Há muitas formas de arte: a pintura, a escultura, a dança e cada forma de arte utiliza-se de uma matéria-prima diferente. A da Literatura é a palavra.

Às vezes é muito difícil saber por que gostamos de uma coisa e não de outra. A noção do que é bonito muda de pessoa para pessoa. Além disso, o gosto das pessoas, como já vimos, muda com o tempo. Mas, se por um lado, a literatura é a forma de arte que se ocupa dos textos considerados belos e por outro, a beleza é algo que muda facilmente, conforme a época, o lugar e a pessoa, então como saber que texto deve ser considerado uma obra de arte, ou seja, literatura?

Como um texto se torna literário

Como saber se um texto é literário? Examinemos o poema "As pessoas sensíveis", da escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen:


As pessoas sensíveis não são capazes

De matar galinhas

Porém são capazes

De comer galinhas



O dinheiro cheira a pobre e cheira

À roupa do seu corpo

Aquela roupa

Que depois da chuva secou sobre o corpo

Porque não tinham outra



O dinheiro cheira a pobre e cheira

A roupa

Que depois do suor não foi lavada

Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"

Assim nos foi imposto

E não:

"Com o suor dos outros ganharás o pão".



Ó vendilhões do templo

Ó construtores

Das grandes estátuas balofas e pesadas

Ó cheios de devoção e de proveito



Perdoai-lhes Senhor

Porque eles sabem o que fazem.

O poema "As pessoas sensíveis" é considerado parte da literatura em língua portuguesa. Nele, percebemos uma voz que se queixa de haver pessoas sensíveis que não são capazes de matar galinhas, mas que não se importam em comê-las, desde que outra pessoa as mate. Mas será que o assunto principal do poema são as galinhas? É claro que não! O poema permite que nós pensemos em todas as pessoas que, para ser felizes, precisam explorar o trabalho dos outros. Há muita gente assim no mundo: Pessoas que ganham o seu pão com o suor dos outros. Pois é, e essas pessoas, de acordo com o poema, ainda se dizem religiosas e "cheios de devoção". É claro que o problema não é conseguir ou não matar uma galinha. Há uma realidade maior e que toca na vida de todos nós: a exploração do ser humano. O problema maior é o de ganhar o pão com o suor dos outros, como fala o texto.

Falar de forma bela do sofrimento não é fácil. A forma um pouco brincalhona, um pouco amarga como o poema trata desse assunto tão delicado da divisão da sociedade entre os que exploram e os que são explorados emociona algumas pessoas. Faz com que pensem em aspectos profundos da existência humana, nas suas próprias vidas e nas dos outros.

Ao ler esse poema, muitos o consideram literário. Isso significa que dentro da sociedade existe uma comunidade de pessoas que considera esse poema como literatura, ou seja, uma obra de arte feita com palavras. Essa comunidade tem muito valor na sociedade em que vivemos e mostra o seu poder na escola, nos meios de comunicação, na política e em outras instituições sociais. Por isso é tão comum se falar da importância da Literatura na Escola. Tal comunidade é leitora de literatura. Mas é só um texto que resolve o assunto? Basta considerar um poema como feio para deixar de pertencer a essa comunidade?

Não, pois a Literatura de uma língua, como a nossa, a Língua Portuguesa, é formada por muitos textos, de muitos autores, que viveram em épocas e até em lugares diferentes. Assim, a definição de Literatura passa por dois caminhos ao mesmo tempo: de um lado o uso da linguagem no texto e, por outro, os momentos históricos e sociais em que o texto é produzido e lido. Muitas vezes, alguns consideram um texto como literário e outros não, embora os dois lados pertençam à mesma sociedade onde o texto é lido. Para alguns Literatura é apenas o uso das palavras para captar a beleza, que não necessita fazer-nos pensar em nada. Mas não é esse o caso do poema que lemos da Sophia, tampouco é o caso do poema que vamos ler agora:



Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;



É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;



É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.



Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

O poema que lemos é de Camões e foi escrito há mais de 400 anos. Apesar de ser um poema tão antigo, muitos ainda o consideram como literário. Ele ainda é lido por muitas pessoas e, até mesmo, há os que o copiam para enviar para aquela pessoa que amam. Camões certamente pode ser considerado um grande artista ao escrever um poema que consegue ser apreciado por tantas pessoas, apesar da passagem dos anos. E enquanto o tempo for passando e houver tantas pessoas que considerem esse poema belo, ele continuará fazendo parte da Literatura da Língua Portuguesa. É claro que muitas pessoas discutem a validade dos versos de Camões: Tais pessoas reforçam, assim, seu direito à cidadania por se inserirem na comunidade leitora de Literatura.

Mais importante do que nos preocuparmos com se um texto vai deixar de ser considerado literário ou se ele vai continuar pertencendo à Literatura e até quando, é, nós, como leitores, tirarmos todo o proveito do que a Literatura tem a nos oferecer. E o que a Literatura tem a nos oferecer? Conhecimentos variados sobre a sociedade em que vivemos e na que outros viveram, mas, principalmente, o prazer que só as coisas bonitas nos conseguem dar. Um prazer que se origina do pensamento, quando questionamos a vida e o mundo ao nosso redor. Todos, o que inclui professores e alunos, temos o direito ao texto literário e é muito importante que você o leia, caso contrário, outros o farão por você e lhe passarão a perna! Ler Literatura, comentar sobre os textos literários, construir leituras neles é um prazer e, principalmente, um direito seu!

BIBLIOGRAFIA
BOSI, Alfredo (1977). O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/Edusp.
EAGLETON, Terry (2001). Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes.
ISER, Wolfgang (1999). O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. 2. São Paulo: editora 34.
SILVA, Vítor M. de A . (1990). Teoria e Metodologia Literárias. Lisboa: Universidade Aberta.
VIEIRA, Alice (1989). O prazer do texto: perspectivas para o ensino de literatura. São Paulo: EPU.

10 de março de 2010

POR QUE O FRANGO ATRAVESSOU A RUA?

A intertextualidade é um tema muito importante quando o assunto é a construção do sentido em um texto. A intertextualidade pode se constituir de modo explícito ou implícito. Nesta seção, no capítulo 3, trataremos somente das relações de intertextualidade explícita, ou seja, quando há a citação da fonte do intertexto, como acontece nas citações e referências, por exemplo. Observe isso no trecho a seguir:


Relatos variados dão conta de que Fidel costumava trabalhar, durante os 47 anos em que esteve à frente de Cuba, de segunda a domingo, até as madrugadas. Assim, pouco tempo possuía para usufruir de eventuais vantagens concedidas pelo cargo. Apesar disso, a revista norte-americana "Forbes" vem incluindo o líder em uma lista de reis, rainhas e ditadores mais ricos do mundo, que prepara anualmente. Em abril de 2006, Fidel Castro aparecia como o oitavo da relação, com um patrimônio pessoal avaliado em US$ 900 milhões.


GARAVELLO, Murilo. “Orador carismático, governante centralizador”. Especial Cuba. Encontrado em < http://noticias.uol.com.br/ultnot/especial/2008/cuba/perfilfidel.jhtm> acessado em 21 de fevereiro de 2008.

O texto de Garavello estabelece uma evidente intertextualidade explícita com a revista Forbes. A seleção de uma determinada informação atribuída a uma fonte que não o próprio autor, ajuda, algumas vezes, a reforçar um ponto de vista, a diminuir posições contrárias em questões polêmicas, como é o caso aqui.

Uma das perguntas mais famosas que circula na internet é “Por que o frango atravessou a rua?”. As diferentes respostas apelam ao conhecimento enciclopédico do leitor e à sua habilidade de construir relações intertextuais no processo de leitura do texto. As diferentes marcas de intertextualidade explícita, no entanto, não facilitam a vida do leitor que não tenha bom conhecimento de mundo. Vejamos alguns exemplos:

PLATÃO: Porque buscava alcançar o bem.

Muitos sabem que Platão era um filósofo e como a frase tem um ‘ar’ filosófico pode parecer que está tudo certo. Mas, para aqueles que conhecem um pouco melhor o pensamento de Platão, há possibilidades de interpretação do texto mais profundas. O “Bem” para Platão é o ápice da existência, o ideal supremo que todos deveriam alcançar. Até as galinhas, de acordo com a visão bem humorada deste texto. Levanta-se, então, uma suspeita no leitor: as galinhas recebem, no texto, o tratamento dado aos seres humanos. Um outro exemplo confirmará ou não essa hipótese:
MOISÉS: Porque uma voz do céu bradou ao frango: “Vós atravessaréis a rua”, e o frango cruzou a rua, e houve grande regozijo.

Compreender essa resposta exige algum conhecimento da tradição judaico-cristã. Segundo a Bíblia (ou a Tora), Deus manda que Moisés cruze o Mar Vermelho para libertar os israelitas da escravidão no Egito. A escolha de termos como ‘bradar’ e do pronome de tratamento ‘Vós’ que caracterizam certo estilo religioso, reforçam essa idéia. O frango aqui não é um ser humano qualquer, mas representa o próprio Moisés, numa verdadeira ousadia galinácea do autor.

Tais ousadias são comuns nos dias de hoje, em especial em textos que circulam sem autoria na internet. Muitas vezes, elas são criativas e enriquecem o texto. Outras, tornam-se ofensivas e preconceituosas. Um exemplo de preconceito é reconhecível no trecho a seguir:

FEMINISTAS: Para humilhar a franga, num gesto exibicionista, tipicamente machista, tentando, além disso, convencê-la de que, enquanto franga, jamais terá habilidade suficiente para cruzar a rua.

Na fala do que é denominado como “feministas” podemos identificar alguns preconceitos comumente associados a este grupo social: a incapacidade de encontrar o equilíbrio entre os gêneros sexuais e de ver qualquer atitude do masculino como sendo ameaçadora ao feminino. Além disso, não deixa de ser interessante notar que não se assume uma autoria determinada (do tipo Fulano disse), o que torna difícil identificar um texto específico que estabeleça a relação intertextual com o que se escreve. No texto resposta, ecoam outros comentários que ouvimos e que traduzem um modo de ver o mundo modelado apenas pelo senso comum e associado a um tipo específico de pessoa.

Diferente é a situação da seguinte resposta:

MARTIN LUTHER KING: Eu tenho um sonho: que meus frangos vão um dia viver em uma nação onde eles poderão cruzar a rua sem questionamentos ou dúvidas. Eu tenho um sonho hoje!

Martin Luther King foi um pastor e ativista político que se tornou famoso pela sua luta nos EUA pelos direitos civis. Em 1963, profere o discurso “Eu tenho um sonho”, no qual encontramos o seguinte trecho:

Eu tenho um sonho: que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!

É fácil encontrar as semelhanças entre as duas falas, a do fictício King preocupa-se com os seus frangos e no direito deles de atravessar a rua; já o verdadeiro Martin Luther King pensava em suas crianças não sofrendo de preconceitos raciais.

Há muitas formas de fazer humor, quando nos aproximamos de um texto, buscamos algo: informarmo-nos, estudarmos, divertir-nos etc. O texto “Por que o frango atravessou a rua?” busca o humor, a diversão do leitor, por deslocar textos de seu contexto ou por alimentar-se do senso comum. Nos qualquer um dos casos, espera-se que o leitor (re)conheça o outro texto. Isso exige um constante ampliar de horizontes, pensando a leitura como uma atividade em rede, que nos enreda nos diversos conhecimentos que vamos adquirindo no correr da vida.

5 de fevereiro de 2010

Considerações sobre os trabalhos em grupo na Escola

Promover as situações de trabalho em grupo – seja entre educadores ou alunos – possibilita que sejam reveladas e desenvolvidas diversas atitudes e habilidades, entre elas considerar pontos de vista divergentes, ser coerente, justificar argumentos, dar suporte para outros etc.

Organizar um trabalho em grupo não é apenas colocar educadores ou educandos juntos, reunidos. Algo que é decidido na hora. Lamentavelmente, nossos olhos educadores, por vezes, vêem alguns considerando os trabalhos em grupo apenas como oportunidades de diminuir seu próprio trabalho de participação. Uma pena!

Em qualquer grupo, escolar ou não, devemos cultivar um ambiente de respeito pelo outro e pelas suas idéias. Ao mesmo tempo, esse ambiente favorecerá a discussão dessas ideias e o consequente surgir de questionamentos. Coordenar um trabalho em grupo põe-nos diante do desafio de elaborarmos diferentes propostas de trabalho envolvendo, como for mais apropriado para os objetivos propostos, duplas, trios, quartetos ou, até mesmo, todo o coletivo, como quando fazemos um texto coletivo. Cada proposta, naturalmente, deve alcançar um objetivo determinado.

Fomentar um objetivo comum, uma tarefa específica que o grupo se sente hábil a resolver em conjunto, cria a coesão necessária para que os indivíduos se assumam participantes do grupo.

É preciso, portanto, ter bem claros os objetivos que se deseja alcançar em cada situação e por que em grupo esses objetivos serão melhor alcançados que individualmente. Por isso, o tamanho dos grupos (embora, em atividades de produção escrita, grupos com mais de cinco elementos se mostrem, na maior parte das vezes, problemáticos) e a escolha dos parceiros deve ser feita pelos alunos ou pelo professor, de acordo com cada caso.

Circular entre os grupos de alunos, durante a execução da tarefa, permite que o educador estimule a discussão, bem como certifique-se que os alunos compreenderam o problema central da atividade. Possibilita também que o professor sirva de apoio para a organização e a divisão do trabalho a fim de realizar as ações propostas.

O trabalho em grupo favorece a escuta do outro e a discussão de diferentes idéias que surgem durante a realização da tarefa.

Os trabalhos escolares em grupo podem se servir de uma estrutura fundamental composta de coordenador de discussões e relator. Todo grupo deve contar com um coordenador de discussões cuja função é controlar o tempo. Deve também apresentar um relator do trabalho, que anota as idéias principais, bem como a síntese da reunião. A cada encontro, os papéis no grupo podem ser trocados para que todos possam o funcionamento das diferentes partes que devem interagir adequadamente.

Não se trata de um trabalho simples. Ser grupo é um aprendizado que exige freqüência dos participantes, planejamento e registro das ações, coordenação, estímulo constante e respeito. Investir nessa forma de trabalho, entre educadores ou educandos, é um dos meios mais eficientes para desenvolver uma atitude cidadã consistente.

E e isso que, acima de tudo, os nossos olhos educadores almejam ver.